Vamos mostrar bandeiras brancas às pessoas com quem nos cruzamos
Acho que o mundo estaria melhor se fossem as mães e os pais compassivos a governá-lo, porque jamais enviariam os filhos para uma guerra cujo objetivo é matar os filhos dos outros.
Querida Mãe,
O Manuel bate com a pá na cabeça da Joana enquanto brincam na areia num parque infantil. A mãe do Manuel sai em defesa da pobre Joana, e a mãe da Joana apazigua a mãe do Manuel, desvalorizando o assunto. Esta é das “cenas” mais bonitas a que se pode assistir e que sinto sempre muita ternura. É um momento em que uma mãe diz à outra: “Sei que o teu filho magoou o meu, mas não te preocupes porque podia ser ao contrário. São crianças e isto é normal.”
É uma atitude generosa de uns para os outros, que no fundo se resume a uma admissão de que “estamos no mesmo barco”, e que tem especial valor porque vai contra o nosso instinto mais primário, que é o de defender o nosso filho e tomar o seu partido. Mas o que é mais engraçado é que esta dinâmica só é bonita e só funciona se ambas as mães estiveram na mesma página e oferecerem essa compaixão uma à outra.
Como é que os filhos sentem estas interações? Deve ser um choque para os mais pequeninos de repente verem a mãe ou o pai a consolar a criança que agrediram, mas devem ficar igualmente surpreendidos quando sentem a compreensão de um estranho, que lhes vem oferecer compaixão e um perdão.
Definitivamente acho que o mundo estaria melhor se fossem as mães e os pais compassivos a governá-lo, porque jamais enviariam os filhos para uma guerra cujo objetivo é matar os filhos dos outros. Talvez seja esse o trabalho pela paz que podemos ir fazendo com os nossos miúdos: içar bandeiras brancas às pessoas com quem nos cruzamos, levando os nossos filhos a fazer o mesmo.
Querida Ana,
Gosto dessa ideia das bandeiras da paz que içamos em contracorrente com os nossos instintos mais primários, e tenho a certeza de que são uma lição para os nossos filhos. E para nós próprios que, tantas vezes, vamos na onda da intolerância. Temo que muitos pais não sejam capazes de agir como a mãe do Manuel, que sai em defesa da pobre Joana, por duas razões:
1. Porque conviveram pouco ou nada diretamente com crianças (irmãos mais novos, sobrinhos) até ao momento em que se tornaram pais, metem na cabeça que o seu comportamento é ditado exclusivamente pela boa ou má educação que recebem. Ou seja, bater, morder, não partilhar um brinquedo não é visto como uma reação absolutamente comum e até típica de determinado estádio de desenvolvimento, mas uma “agressão”. E se estarão prontos a indultar a própria criança, voltarão a sua fúria para os pais da dita.
2. Estão tão “colados” aos filhos que não conseguem manter uma distância emocional que lhes permita aceitar que os próprios filhos também podem agir mal, mesmo que sem intenções horrivelmente malévolas ou, neste caso da pá, por serem demasiado pequeninos para controlar a sua irritação, e que pedir desculpa ou reparar a falta nessas situações é o caminho certo. Essa “colagem” também torna difícil desvalorizar a “agressão”, porque em lugar de ser encarada como uma “coisa de crianças”, ou como qualquer coisa que devem resolver entre eles, passa a ser sentido como uma questão pessoal, entre adultos. O resultado é o escalar de um problema insignificante, em disputas que vistas de fora raiam o absurdo.
Ana, e já que estamos neste assunto, quero ouvir a tua opinião sobre a política de muitas creches/jardins de infância nos EUA e no Reino Unido do “Três mordidelas, rua!”, com registo de ocorrência, fotografias da mordidela, etc.. E estamos a falar de um comportamento comum às crianças de um, dois, três anos que, à falta de palavras suficientes para exprimirem a sua frustração, usam os dentes... Fico à espera.
O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990