O Dia na Biblioteca: Meio
É pela tarde que há mais movimento. A biblioteca está cheia como um ovo, a transbordar de trabalho, leitura, concentração e silêncio. Mas como é que alguma coisa pode transbordar de silêncio?
“Ao passar, o tempo diminui o futuro que tem e aumenta o seu passado.”
António de Castro Caeiro, O que é a filosofia?
À minha frente, na mesa, o lugar está vazio. O passarinho tardio pegou na lancheira e voou para outra freguesia. Espero que se tenha desligado das contas por hoje e que amanhã recomece com outro ânimo. Parar enquanto é tempo pressupõe parar antes que seja tarde demais, longe do fim. Estamos a meio do dia, ainda há muito tempo para recomeços. Assim é também na vida. A meia-idade, definida pela Organização Mundial da Saúde como sendo entre os 40 e os 60 anos — encontro-me na interessantíssima posição de estar a meio da meia-idade —, tem sido, para mim, tempo de balanços, de experiências e de fazer o que ainda não foi feito, como canta Pedro Abrunhosa:
“Tens uma estrada / Tenho uma mão cheia de nada / Somos um todo imperfeito / Tu és inteira e eu desfeito / Vamos fazer o que ainda não foi feito
E eu sou mais do que te invento / Tu és um mundo com mundos por dentro / E temos tanto pra contar / Vem nesta noite / Fomos tão longe a vida toda / Somos um beijo que demora / Porque amanhã é sempre tarde demais”
Sentado num confortável banco baixo, posicionado entre umas estantes do primeiro piso, folheio a obra A Sociedade Medieval Portuguesa, de A. H. de Oliveira Marques, que, a dada altura, aborda a expectativa de viver e a teoria das idades na primeira metade do século XV, já na transição da Idade Média para a Idade Moderna:
“Entrava-se na velhice com o dobrar do meio século. Setenta anos julgava-se a meta. Mais do que isso havia-se por exceção e quase sempre ‘trabalho e dor’. Mas a meta tinha-se por limite que bem poucos alcançavam. Passados os cinquenta, atingia-se a psicologia do velho. Aos 53 anos, a rainha D. Filipa de Lencastre considerava-se ‘mulher velha’ e recusava-se por isso a fugir da peste que a veio a ceifar. (…) O outono da vida do homem medieval começava pelos 35 anos. Na sua própria teoria das idades, escrevia D. Duarte, que ‘na primeira, aos sete, se mudam os dentes; segunda, de 14, são em idade para poderem casar; terceira de 21, que acabam de crescer; quarta, de 28, que precalçam toda força e verdadeiro fornimento do corpo; quinta, de 35, em que se percalça perfeito esforço, conselho e natural entender; e dali àvante, por semelhante, de sete em sete anos, entendo que vão descendo por outros degraus naturalmente, ainda que não se veja tão claro, até cumprir o conto de 70 anos, em que devemos fazer fins de nossos dias para os feitos da presente vida’.”
Segundo os parâmetros medievais, há quatro ou cinco idosos, incluindo-me, nesta sala de leitura: verdadeiros fenómenos que até uma pandemia escaparam, ao contrário da rainha D. Filipa de Lencastre. Levanto-me para caminhar um pouco, uma prática que contribui para a longevidade. À passagem pelo átrio da biblioteca, onde se encontra o espaço de leitura de periódicos, conto sete pessoas para quem a tarde já vai avançada e que, a coberto dos jornais que seguram, escondendo o rosto enrugado, se encontram a fazer balanços dos seus feitos e escolhas ao longo da vida.
“Fui para os Bosques viver de livre vontade. Para sugar todo o Tutano da Vida. Para aniquilar tudo o que não era vida e para quando morrer, não descobrir que não vivi”, explica Henry David Thoreau, em Walden ou a vida nos bosques. Aos 27 anos, Henry decidiu ir viver para um bosque, junto a um lago, onde construiu uma cabana. Ali viveu durante dois anos para provar aos demais que uma vida simples, em contacto com a natureza, seria mais rica, livre e feliz.
No regresso de curto passeio, exploro os livros em destaque. Prende-me a atenção o nome de Bono numa das capas. O livro chama-se Surrender - 40 músicas, uma história. Passam 20 minutos das quatro da tarde. Sento-me num dos sofás confortáveis e abro o livro na primeira música, Lights of home. Bono Vox escreve na primeira pessoa: “Nasci com um coração excêntrico. Numa das câmaras do meu coração, onde a maioria das pessoas tem três válvulas, eu tenho duas. Duas portas giratórias que, no Natal de 2016 [o músico tinha então 56 anos], estiveram quase a sair dos eixos. A aorta é a principal artéria do corpo, a corda de salvamento, que transporta o sangue oxigenado pelos pulmões e se torna a nossa vida. Contudo, descobrimos que a minha aorta se esforçou muito ao longo do tempo e desenvolveu uma bolha. Uma bolha que está prestes a rebentar e que pode enviar-me para o além mais depressa do que o tempo que demora a fazer uma chamada de emergência. Mais depressa do que consigo dizer adeus a esta vida. Portanto, cá estou eu. Hospital Mount Sinai. (…) Sangue e cérebro é o que é preciso neste momento para poder continuar a cantar a minha vida e a vivê-la. Sangue meu. O cérebro e as mãos do mágico que está de pé, debruçado sobre mim, e que pode transformar um dia muito mau num dia muito bom com a estratégia e a execução certas. Nervos de aço e lâminas de aço. Agora o homem aproxima-se do meu peito, manejando a lâmina com o poder da ciência combinado com o do açougue. As forças necessárias para quebrar e invadir o coração de alguém. A magia que é a medicina. Sei que o dia não me irá parecer bom quando acordar depois destas oito horas de cirurgia, mas também sei que acordar é melhor do que a alternativa”.
Quanta incerteza e honestidade nesta reflexão sobre o percalço vivido num entardecer incerto. “Como é adorável passar a tarde assim! Garanto que não há nada mais divertido que ler! Tudo cansa, menos um livro! Quando tiver a minha própria casa, não serei feliz até ter uma excelente biblioteca!”, escreveu Jane Austen, em Orgulho e Preconceito. Penso nas minhas estantes e faço um balanço rápido que me tranquiliza: “já tenho em casa livros suficientes para me entreter no entardecer da vida”. Coloco A Sociedade Medieval Portuguesa no carrinho dos livros que vão voltar às prateleiras e regresso à mesa que escolhi bem cedo neste dia que caminha para o fim.
Um rapaz de rosetas pronunciadas ocupou o lugar do passarinho tardio.
— Boa tarde! Estás bom? —, digo-lhe em voz baixa.
— Boa tarde! Sim, tudo bem? E consigo?
— Também, obrigado. Trata-me por tu. Posso fazer-te umas perguntas?
— Sim.
— Porque é que só chegaste agora à biblioteca? Mais de metade do dia já se foi…
O telemóvel toca. O rapaz apressa-se a desligá-lo e começa a enviar uma mensagem. Observo a sala, pensando na pergunta que coloquei ao meu novo vizinho. Concluo que é pela tarde que há mais movimento. A biblioteca está cheia como um ovo, a transbordar de trabalho, leitura, concentração e silêncio. Mas como é que alguma coisa pode transbordar de silêncio? Silêncio: espaço impalpável cheio de potencial, onde se forjam pensamentos e se cultivam ideias numa densidade invisível. A tarde é a hora rainha do labor e da produção neste lugar. A maioria dos presentes são jovens. Falei com alguns sobre as suas rotinas. Deitam-se tarde, duas, três da manhã. E, na sua maioria, levantam-se cedo.
— Deito-me tarde —, diz-me o rapaz, agora com as rosetas quase fluorescentes. — Costumo aproveitar a noite para estudar, pois o silêncio ajuda-me a concentrar. E o dia não termina só porque já passou a manhã e o início da tarde…
Sorrio com a provocação.
— Tens razão.
20 anos. Ainda no amanhecer da vida.
Abro o Livro das Horas que recolhi há pouco de uma prateleira. Nélida Pinõn inicia assim as suas memórias: “Não sou forte nem poderosa. Tampouco estou na flor dos vinte anos. Não faz falta enaltecer o meu retrato que a mãe Carmen outrora pendurou em seu quarto antes de morrer, com a intenção de eternizar a juventude da filha na sua retina. Quem sabe pretendendo que os anos vividos não lhe roubassem a memória que ainda guardava de mim.”
A tarde passou depressa. Estamos expostos à passagem contínua do tempo. “Existir é o modo como tempo, na vida humana, acontece, a resgatar cada novo instante à possibilidade provável de não acontecer. Cada ser humano relaciona-se com o seu horizonte de ser, podendo compreender explicitamente o que (…) cada instante está a ser obliterado, é vivido e nunca mais há-de regressar. (…) Dizemos, de facto, ‘tempos virão’. Mas o tempo passa”, desenvolve António de Castro Caeiro, em O que é a filosofia?, socorrendo-se, em seguida, das Confissões de Santo Agostinho para reforçar a sua ideia:
“E mesmo uma única hora passa com segundos fugazes. O que quer que dela tenha voado completamente é passado e o que ainda lhe resta é futuro. Se pudesse ser compreendido um momento do tempo que não pudesse ser dividido já em partes mais ínfimas, era a isso apenas que se poderia chamar presente. Mas também o presente passa a voar tão rapidamente do futuro para o passado que nenhuma parte dele pode ser estendida numa duração temporal. Pois se é estendida numa duração, é dividida em passado e futuro, mas o presente não tem nenhuma extensão durante a qual possa ser estendido.”
Regresso ao Livro das Horas. Nélida Piñon dita-me a conclusão desta crónica:
“O tempo escoa veloz e não fala. Envelheço e se acentua minha curiosidade em saber se chegarei um dia a salvo às portas do Índico, onde suspeito estar atracado o meu destino. Quando descubra, talvez, se a retrospetiva da minha existência está ao meu alcance. Para as minhas perguntas, não há resposta audível. Ouço apenas uma voz que me recrimina por estar ainda pendente de fantasias mitológicas, da noção da perenidade das coisas, da escassez dos dias por viver. Como se há muito devesse me ter apaziguado, ancorado na sala da casa.”
São seis da tarde. Já está escuro lá fora.
O Mundo na Biblioteca é um projeto de João da Silva que visa destacar a importância da leitura e do acesso ao conhecimento. Esta criação, intitulada O Dia na Biblioteca, reúne as crónicas Início, Meio e Fim, escritas durante a estada do autor na Biblioteca Municipal de Oeiras. Todos os livros mencionados nestas crónicas fazem parte do acervo da biblioteca e estão disponíveis para consulta.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990