Querida Casa, vou-me embora

Quando olho para ti, a despir-te das coisas, dos livros, dos quadros, das loiças , dos panos de cozinha, da chaleira vermelha, as gavetas ficam abertas como bocas, e misturam no ar tantas coisas.

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Vou-me embora. É hora de te deixar. 2016-2025.

Quando olho para ti, a despir-te das coisas, dos livros, dos quadros, da roupa, das loiças, dos panos de cozinha, da chaleira vermelha, as gavetas ficam abertas como bocas, e misturam no ar tantas coisas, tantos ecos de risos, tantos solavancos de tristeza, tantos sentimentos e coisas que só tinham nome aqui.

E ela chega como a chuva escura do Porto: a minha amiga Nostalgia. A palavra vem do grego nostos ("reencontro") e algos ("dor, sofrimento"). A dor do reencontro.

E é muito isso. Aquela sensação do reencontro de uma peça de roupa perdida, que de repente aparece no armário, vinda de 2017 não sabemos bem em que guerras andou e quando aparece traz-nos uma alegria súbita, logo seguida de uma tristeza pesada, de saber que não regressamos mais ao tempo daquelas calças Levis. E isso é a nostalgia. Como uma máquina do tempo que não sai do mesmo sítio mas para onde podemos olhar, um holograma fodido no meio de nós, numa sexta-feira à tarde.

Há também o contrário: o imenso alívio de nos despejarmos das coisas que acumulamos em muitos anos. E admito que essa parte do desapego é libertadora. Venha quem vier, é a terapia perfeita para quem quer fazer fintas à melancolia.

Voltando a ti....

Quando entrei neste estúdio, sito na Rua do Rosário, tinha uma certa mania de enchê-lo de tudo e mais alguma coisa, das coisas de que gostava: de posters, de aguarelas que trazia das viagens, de molduras de vários tipos, de livros, de conchas e mais conchas para me fazer sentir no Verão. Sentia uma enorme necessidade de que a casa fosse a minha extensão física. As paredes amarelas torrado da casa já cá estavam e também eu adoptei a cor na minha roupa. O recorte das árvores no jardim, que em noites de lua cheia e nevoeiro, parecia um perfeito quadro de Magritte, o meu pintor preferido, também ele era eu.

Portanto, a casa também se apoderou de mim. E quanto mais tempo passava, mais difícil era de sair. Porque a casa era eu. Eu era a casa. E como desfazer este laço de quase oito anos? Mesmo quando comecei a perceber que muitas coisas falhavam na casa, as manchas de humidade, a água que sempre saía do duche, havia uma estranha resiliência em ficar, aliada sem dúvida à falta de uma alternativa acessível para viver.

Precisamente porque sair desta casa, era sair de mim. E agora o sentimento é o contrário: não tenho necessidade de me encher nada de nada, antes de me esvaziar. Talvez existam algumas coisas importantes, mas não tão importantes como abrir caminho novo e esse tem o brilho fresco das coisas que ainda não conhecemos, mas que sonhamos.

Mas aqui no final, vou confessar: sou daquelas pessoas sentimentais que nas noites de insónia passeia pelas mil casas onde viveu, passou férias, de várias geografias, onde foi essencialmente muito feliz. E decoro os espaços da casa, a sua configuração, vejo mentalmente o corredor, a cor do sofá, dou três passos atrás para ter a certeza de que a porta ficou aberta e memorizo cada canto para nunca mais me esquecer do caminho de volta.

Minha Rosário 280. Vemo-nos em algumas noites. Deixo-te comigo.

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