Logo à entrada da galeria do espaço Narrativa, em Lisboa, uma fotografia de um enorme rochedo frio e solitário, envolto em neblina, parece saudar solenemente quem chega. Do lado oposto, noutra imagem, o olhar profundo e penetrante de um homem de rosto marcado parece procurar o do espectador. Há nele estranheza, desconforto. Por toda a sala de paredes brancas, estão dispostas fotografias que descrevem paisagens oníricas ou fantasmagóricas que parecem desconectadas do tempo. Nos muitos retratos, semblantes mudos, carregados, parecem sugerir que algo ficou por dizer. Confrontado com o silêncio, o espectador vê-se diante de um espelho que lhe devolve apenas a sua humanidade, emoção. “Tudo é resultado de inquietação”, sugere Augusto Brázio ao Ípsilon. E inquietação produz.
Estas e outras fotografias de Augusto Brázio, expostas até 22 de Fevereiro na galeria dedicada à fotografia, integram o projecto Viagens na Minha Terra. Se o nome soar familiar, não é por acaso. Quando esse foi pensado por Augusto Brázio e Nelson D’Aires, em Agosto de 2015, foi na obra de Almeida Garrett, de 1846, que encontraram inspiração. À semelhança do escritor novecentista, que produziu uma obra de natureza híbrida, situada entre o romance, o ensaio e o relato de viagens, a dupla de fotógrafos gerou uma obra igualmente subjectiva, diversa, reflexiva sobre o Portugal do início do século XXI. Não viajaram de Lisboa a Santarém, como fez Garrett, mas sim de Valongo a Torres Novas, de Aveiro à Covilhã, “territórios de baixa densidade”.
Embora Viagens na Minha Terra tenha sido pensado pelos dois fotógrafos, cedo se determinou que cada capítulo seria desenvolvido individualmente. Brázio e D’Aires mergulharam, cada um, em diferentes geografias, trazendo para as suas imagens diferentes paisagens, rostos e histórias, mantendo-se sempre fiéis à sua assinatura autoral, à estética que caracteriza cada um. “Encontramo-nos nas ideias, mas, na prática, temos caminhos afastados”, observa Augusto Brázio.
Às paredes da Narrativa, a convite de um dos fundadores, o fotojornalista Mário Cruz, curador da exposição, chegaram apenas os capítulos de Brázio, aqueles que fotografou em Ponte de Sor (2016), Águeda (2017) e Covilhã (2018 e 2019).
De Ponte de Sor a Debaixo da Pele
Em Ponte de Sor nasceu Sor, uma publicação impressa, com texto de José Luís Peixoto, que reúne as imagens produzidas por Brázio no concelho, há cerca de nove anos. “Ponte de Sor é no norte do Alentejo. Eu sou alentejano, mas do sul, venho de Serpa”, refere. Recorda ter estado em Ponte de Sor durante o Verão, cerca de 30 dias — período que coincidiu com o espancamento de um jovem de 15 anos, natural do concelho, pelos filhos do embaixador do Iraque em Portugal que, graças ao cargo do pai, gozavam de imunidade diplomática. “Apesar do aparato, esse incidente não teve grande importância no desenvolvimento do meu trabalho. O que achei mais interessante foi ter apanhado o regresso de muitos emigrantes que vinham gozar as férias em Portugal. Nessa altura, ainda estávamos mergulhados numa crise grande, devido à intervenção da troika, e as conversas com os jovens emigrados giravam em torno das dificuldades que se sentiam naquela cidade.”
Havia muita coisa a acontecer em Ponte de Sor, em 2016. “Havia indústria aeronáutica, uma escola de aviação… E ao mesmo tempo muita indústria tradicional, de cortiças, carvão, também havia trabalho agrícola, etc. Era um sítio estranho no meio do Alentejo.” O seu trabalho passou por “falar muito com as pessoas, almoçar com elas, ir à caça, acompanhá-las quando tinham trabalhos”. Elabora: “Eu participo muito. Tento que o meu olhar não seja frio, distante.”
Entre as 23 fotografias que compõem a exposição na Narrativa, dez pertencem ao corpo de trabalho Sor — duas das quais são retratos. “São retratos de pessoas comuns, pessoas que vou encontrando e com quem vou tendo conversas”, recorda. “O que fica no fim são os retratos, não é? São as fotografias desses encontros.” As imagens não são acompanhadas de legendas: não há quaisquer referências a nomes ou coordenadas geográficas. O fotógrafo prefere assim, gosta “que as pessoas construam as suas próprias histórias a partir das imagens”.
Em 2017, Augusto Brázio deslocou-se até Águeda e desenvolveu mais um corpo de trabalho: Debaixo da Pele. O modus operandi foi semelhante. “Não existem diferenças abismais de lugar para lugar”, observa. “Portugal é um país pequeno, geograficamente, e as coisas não são assim tão profundamente diferentes.”
A atmosfera de Debaixo da Pele é também em muito semelhante à do capítulo anterior, Sor, quase lynchiana. “O olhar do fotógrafo é que determina o tom.” É esse olhar que transforma o trivial em extraordinário. “A fotografia do edifício que tem uma cara desenhada é de um equipamento municipal destinado a miúdos. Por isso é que tinha esta configuração. Junto das outras imagens, [esta casa] ganha uma nova leitura.” Para Brázio, “as imagens funcionam como palavras”: “quando pomos determinadas palavras ao lado umas das outras, criamos conceitos. É o que aqui se passa.”
Rasgo, produzido na Covilhã, foi um capítulo especial para o antigo membro do colectivo Kameraphoto. “Foi um dos sítios mais interessantes onde eu estive. Gosto muito de serras, montanhas. Tive uma satisfação particular ao trabalhar neste território.” Foi também foi o sítio onde Augusto Brázio passou mais tempo, graças ao apoio que recebeu da associação de artes performativas Quarta Parede. “Estive presente em muitos momentos-chave. Ia em função dos eventos ou acontecimentos que lá decorriam. Aproveitava esses eventos para fotografar, aproveitando os aglomerados para fazer retratos.” Apesar de nunca “roubar” retratos, de fazer questão de obter o consentimento de todos os retratados antes do disparo, admite que “os tempos estão estranhos” e que “as pessoas têm cada vez mais medo” de desconhecidos, o que dificulta o seu trabalho. Esteve na Covilhã no Inverno, altura em que viu e fotografou cenários nevados, e no Verão — e sete imagens de Rasgo integram a exposição.
No terreno encontra um misto de “gozo e dor” — expressão que deu título a um poema da obra Folhas Caídas, de Almeida Garrett. “É fisicamente stressante. Estou sempre em modo de alerta, sempre pronto para qualquer coisa. Os dias começam muito cedo e acabam muito tarde. É sempre necessária muita energia.” Vai sem agenda, à descoberta. Sem encontros marcados. “Por vezes, vão resultando encontros. Mas quando estou num lugar onde não se passa nada, fico ansioso. Por vezes, quero imagens e elas não acontecem. Mas o essencial é ser sempre curioso.” E a curiosidade de Augusto Brázio é inextinguível.