Estado e associativismo cultural: que futuro?
O “terceiro sector”, na sua vertente cultural e recreativa, atravessa uma fase de recomposição do seu perfil e cultura organizacional. Quais os desafios que enfrenta e como se posiciona o Estado?
As associações de cultura e recreio/lazer de cariz não profissionalizado constituem há muito um ecossistema de inegável relevância em Portugal, enquadrando-se no campo da economia social (terceiro sector) e estando prevista na Constituição da República Portuguesa a sua valorização e protecção por parte do Estado.
O seu impacto qualitativo afere-se não apenas pelo efeito imediato das suas dinâmicas na esfera local, mas também por uma repercussão a médio-longo prazo, mormente como alfobre para a germinação de uma massa crítica, implicada e criativa com potencial transformador e valor acrescentado para os territórios e suas comunidades.
O ADN do meio associativo cultural prima por cinco traços essenciais para o incremento e a consolidação da inclusão, coesão e participação sociais: a transversalidade patente na sua composição interclassista e na configuração dos seus públicos-alvo; a sua proximidade e a imersão comunitárias; a densidade colaborativa em que assenta a sua intervenção; a base predominantemente voluntarista do seu trabalho; e a horizontalidade e a informalidade relacionais, apesar de uma estruturação organizacional assente em órgãos sociais. Estes contextos independentes, maioritariamente de micro-média escala, constituem, assim, lugares privilegiados de afirmação identitária, aprendizagem, cidadania, solidariedade, cooperação e emancipação.
Em 2022, no âmbito de uma investigação sobre o associativismo popular, foi realizado um inquérito nacional pelo Observatório do Associativismo Popular com o Observatório Português das Actividades Culturais, cujos resultados foram sintetizados na obra O associativismo popular português no século XXI (Almedina), recentemente editada, a qual, pelo seu teor e conclusões, merece uma atenção, em termos de discussão na esfera pública, que não lhe foi dada pelos media ligados à cultura nem pelos sectores intelectual e político.
Este estudo, que abarcou 1132 associações, veio confirmar uma percepção já existente no milieu cultural: quanto a apoios (no plano financeiro, na componente da construção/requalificação de espaços e da aquisição de equipamento técnico e/ou material, ou nas dimensões administrativa, fiscal e jurídica), em 87,9% dos casos são as câmaras municipais o principal coadjuvante, seguindo-se as juntas de freguesia (77,6%), as entidades privadas/empresas (51,9%), o Instituto Português do Desporto e Juventude (17,7%) e, por fim, o Estado central (8,1%).
No que concerne à administração local, os diferentes modelos e mecanismos de apoio associativo adoptados pelas autarquias variam, em maior ou menor grau, em função das estratégias municipais, dos perfis dos executivos e gestores, de condicionalismos político-partidários e conjunturais, dos recursos orçamentais disponíveis e das características dos territórios e seus ecossistemas culturais.
Com a conversão das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) em institutos públicos em 2023, e a incorporação de novas competências nos campos da cultura e do património (várias delas alocadas anteriormente às direcções regionais de cultura, entretanto extintas mas com um papel significativo junto dos agentes e das populações), estes organismos da administração indirecta do Estado ganharam acrescida relevância e responsabilidade, numa lógica de maior escuta activa, proximidade e descentralização. Isso traduz-se, relativamente ao ecossistema associativo cultural, na definição e concretização de estratégias regionais, no aprofundamento e diversificação de políticas e mecanismos de apoio, na facilitação/mediação do acesso a programas europeus ou na criação de parcerias e redes de cooperação regionais.
A este panorama somam-se os apoios e protocolos específicos que entidades como o Instituto Português da Juventude (IPDJ) e a Fundação Inatel estabelecem, no âmbito das suas missões, com associações de natureza cultural, artística e recreativa, bem como, por exemplo, as condições especiais, em matéria de direitos de autor e direitos conexos, previstas legalmente para as entidades culturais com estatuto de utilidade pública.
Não obstante a importância deste conjunto de apoios, mais ou menos dispersos, para o associativismo cultural e recreativo, será necessário e premente, do ponto de vista governamental, proceder a uma revisão crítica e actualização dos mesmos, no sentido também de um maior investimento orçamental que possa dar respostas mais incisivas, abrangentes, direccionadas e céleres às necessidades e expectativas dos territórios.
A questão infra-estrutural (espaços, instalações, acessos, equipamentos e outros recursos técnicos e logísticos) afigura-se, neste particular, uma das mais sensíveis, na medida em que tende a ser a dimensão mais exigente, deficitária e problemática pela própria natureza e volume de encargos associados. Actualmente, a nível do Estado central, apenas o programa “Equipamentos” (gerido pela Direcção-Geral das Autarquias Locais com o apoio das CCDR) garante um suporte a essa tipologia específica de despesa, o qual ganhará com uma actualização legislativo-regulamentar e com um maior robustecimento financeiro em face da realidade nacional e da amplitude de potenciais destinatários.
Tem-se assistido a um processo de recomposição do perfil e da cultura organizacional do tecido associativo. Um número relevante de associações culturais, quer mais antigas quer mais recentes, tem vindo gradualmente a profissionalizar-se e a transformar-se em entidades prestadoras de serviços, numa lógica de mercado. Por outro lado, a própria iniciativa privada de natureza comercial também vai operando cada vez mais em domínios tradicionalmente dinamizados pelo movimento associativo.
Urge um debate e uma reflexão em torno do tema do associativismo popular (cultural e recreativo) e seus desafios e constrangimentos actuais, envolvendo as áreas governativas competentes (cultura, coesão territorial, economia, solidariedade), as estruturas representativas do sector (Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto; Confederação Musical Portuguesa; Federação do Folclore Português, entre outras), as comunidades intermunicipais, as autarquias, a Fundação Inatel, o IPDJ e outras entidades públicas e independentes com produção de conhecimento sobre esta matéria.
Não existe ainda em Portugal, da parte do Estado central, uma visão holística e integrada sobre o terceiro sector cultural, que se traduza numa política associativa coerente, robusta e articulada entre as várias instâncias públicas que nela participam activamente. É necessária uma abordagem sistémica, com visão estratégica, que, além de enquadrar e delimitar conceptualmente este ecossistema, o dote de um regime jurídico e fiscal adequado – por exemplo, espera-se desde 2013 por uma regulamentação fiscal específica para este universo, tal como então previsto na Lei de Bases da Economia Social –, que atenda à sua diversidade de perfis/tipologias e áreas de actuação (desde o associativismo de base popular e voluntária ao profissionalizado), e que também defina e consolide linhas e programas de apoio de âmbito nacional e regional para este universo, mormente aos níveis da capacitação/formação, dos equipamentos e das dinâmicas colaborativas quer de criação e programação em rede, quer de boas práticas intersectoriais.