Demência de idosos e realidade fechada dos lares explicam taxa elevada de inquéritos-crime arquivados
Procurador-geral da República quer celeridade das investigações que decidiu devolver às comarcas, depois de terem estado sob a responsabilidade do DCIAP.
Os crimes contra idosos ocorridos em lares só muito dificilmente são provados. Isso leva a que os inquéritos por suspeitas de maus tratos ou negligência dos utentes nestas estruturas residenciais, abertos no Ministério Público, sejam quase sempre arquivados, diz Inês Martins, magistrada do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).
A procuradora da República foi uma das magistradas a ficar responsável por estas investigações, a partir de 22 de Março de 2023, quando a anterior procuradora-geral da República, Lucília Gago, centralizou estes inquéritos-crime no DCIAP.
Essa decisão foi entretanto revertida, em 7 de Novembro, pelo novo procurador-geral da República, Amadeu Guerra, que voltou a atribuir a titularidade destes inquéritos aos procuradores dos departamentos do Ministério Público nas respectivas comarcas.
Famílias distantes
Inês Martins não se pronuncia sobre essa recente mudança. Apenas diz que o despacho de Lucília Gago, de Março do ano passado, data da altura em que a existência de lares ilegais em grandes números se tornou mais evidente. Com a decisão de Amadeu Guerra, a procuradora deixará de investigar esta área assim que os processos ainda sob a sua responsabilidade estiverem concluídos. São muitos, e uma ínfima percentagem resulta em acusação.
“A taxa de arquivamento é de 98%", começa por dizer Inês Martins ao PÚBLICO, com base na sua percepção que assenta nos muitos processos de que foi responsável ao longo de um ano e meio, e não num levantamento oficial da Procuradoria-Geral da República.
"As dificuldades são ao nível probatório. Estes maus tratos ocorrem em lares que, por natureza, são ambientes fechados, que não estão à vista de terceiros que não sejam os utentes, os colaboradores e os familiares naquelas visitas” raras na maior parte dos casos, salienta. “Há alguns que visitam os lares uma vez por mês e, se calhar, nem tanto. A percepção do que se passa lá dentro é distante."
Denúncias anónimas
Mas outros factores se atravessam na investigação, dificultando-a. “Muitas das denúncias são anónimas. Não é [pois] possível aferir o conhecimento e o tipo de conhecimento que as pessoas têm dos factos que denunciam”, acrescenta Inês Martins.
Quando são os familiares a fazer queixa da ocorrência, em praticamente todos os casos não a presenciaram. “Quando denunciam os factos, já estes ocorreram, e quando tentamos reconstitui-los, a dificuldade prende-se com vários motivos." Enumera-os: “Temos os lares ilegais onde não há registos de ocorrências nem do porquê da ocorrência, como por exemplo uma queda. Fica difícil reconstituir a situação."
Há outra explicação: “Os ofendidos, na sua grande maioria, têm demência ou não estão em condições de prestar declarações. O mesmo acontece com os outros utentes, que poderiam presenciar os factos mas padecem dos mesmos problemas. Com isso, torna-se muito difícil serem testemunhas.”
"Depoimentos pouco isentos"
São os funcionários ou colaboradores que trabalham nas estruturas residenciais para idosos (ERPI) aqueles que “por natureza” têm uma maior probabilidade de presenciar os factos. Ao mesmo tempo, acrescenta Inês Martins, "não é fácil obter, das pessoas que trabalham no lar, um depoimento isento e, muitas vezes, até credível”. Ou são elas mesmas suspeitas, ou, mesmo não sendo, tentam escamotear os factos ou dizem que a ocorrência já se deu quando lá chegaram.
No balanço enviado a pedido do PÚBLICO em Outubro deste ano, o número de casos ainda por resolver até Agosto era significativo, bem como a taxa de arquivamentos. Havia 318 inquéritos sem decisão final e esse número englobava os deste ano (219 inquéritos) e os mais antigos. Mas, relativamente aos concluídos, apenas num caso, o inquérito resultara numa acusação.
Com efeito, em 100 processos, o despacho final tinha sido para arquivar o caso; um outro, após despacho de arquivamento, fora reaberto; e os restantes 44 tinham sido juntos a outros processos em que os visados eram coincidentes.
Do DCIAP para as comarcas
Motivado ou não por este contexto de uma maioria esmagadora de arquivamentos, Amadeu Guerra decidiu voltar a descentralizar estes inquéritos pelos departamentos do MP nas comarcas locais, retirando-os ao DCIAP, pouco mais de um ano e meio depois de Lucília Gago aí os ter concentrado.
Na sua primeira instrução formal (1/2024 de 7 de Novembro), o procurador-geral da República afirma-se convicto dos benefícios de uma descentralização do exercício da acção penal e de uma proximidade dos magistrados às vítimas e suas famílias.
“Foi possível concluir que as vantagens da concentração da investigação são superadas pela desvantagem da ausência de proximidade com as entidades locais”, refere a instrução de Amadeu Guerra, que alude especificamente à necessidade de os titulares da investigação estarem próximos das equipas da Segurança Social, das autoridades de saúde pública, das polícias e gabinetes médico-legais bem como das próprias vítimas e seus familiares.
Por ser “imprescindível a recolha de declarações para memória futura” das vítimas, pela sua especial vulnerabilidade e em nome dos seus interesses, cumpre reponderar a concentração das investigações, pelas vantagens da proximidade no sentido de uma maior “eficácia, celeridade e eficiência da investigação”, lê-se ainda na instrução dada aos magistrados do Ministério Público, menos de um mês após tomar posse.
Tanto mais, diz Amadeu Guerra, que a falta de proximidade, ao obrigar magistrados e outros intervenientes nos processos “a deslocações por vezes de centenas de quilómetros” prejudica a celeridade e eficácia das investigações.
Aumento das denúncias
Amadeu Guerra lembra que a decisão da sua antecessora tinha sido motivada pelo “aumento de denúncias sobre condições indignas e de tratamento das pessoas idosas” nos lares. O despacho de Lucília Gago, de 22 de Março de 2023, dizia respeito a suspeitas de negligência ou maus tratos a idosos, bem como à apropriação indevida dos seus rendimentos e património, e condutas criminosas associadas ao funcionamento dessas estruturasERPI, como burla qualificada, fraude fiscal ou outros crimes de natureza financeira.
Estes passaram, a partir desse momento, a ser dirigidos pelo departamento central que investiga a criminalidade violenta e de especial complexidade, e os crimes de natureza económico-financeira, na capital.
Contudo, refere ainda Amadeu Guerra, um ano e meio de balanço da vigência do despacho da sua antecessora permite concluir que “na quase totalidade dos inquéritos instaurados não se investiga qualquer tipo de criminalidade económico-financeira”. O procurador-geral da República entende que nestes casos deve ser "privilegiada, sempre que possível, a investigação em secções especializadas em criminalidade violenta e especialmente violenta" dos departamentos de investigação e acção penal (DIAP) das comarcas locais.
Na altura, no despacho proferido, Lucília Gago justificava a decisão de concentrar no DCIAP estas investigações com o argumento de uma “inquestionável gravidade dos factos denunciados” perante os quais se exigia “um elevado grau de especialização e conhecimento” e “procedimentos de investigação uniformes” que permitissem “uma intervenção adequada, célere e eficaz”.
Competências do DCIAP
Esses aspectos, bem como “a dispersão nacional” destas denúncias que incidem sobre “as condições indignas e cruéis de tratamento” de “pessoas particularmente indefesas” e o facto de as queixas estarem a dar entrada “em número crescente”, justificaram a centralização dos respectivos inquéritos.
Lucília Gago entendia que “no contexto da intervenção penal podem (...) mais expressivamente ser convocados como objecto de investigação criminal os crimes de maus-tratos e de burla qualificada, sem descurar a eventualidade da verificação de crimes de natureza económico-financeira".