Morreu o historiador e coleccionador António Pedro Vicente
Colecção de máquinas fotográficas, com exemplares raríssimos, é base do núcleo museológico do Centro Português de Fotografia e a colecção de iconografia da I República está na Fundação Mário Soares.
O historiador e professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa António Pedro Vicente morreu neste fim-de-semana aos 86 anos, anunciou a família e confirmou o PÚBLICO junto do Instituto de História Contemporânea (IHC) daquela universidade. A sua colecção de máquinas fotográficas, com exemplares raríssimos, serviu de base ao núcleo museológico do Centro Português de Fotografia (CPF), que tem aliás o seu nome, e a sua colecção de iconografia da I República está depositada na Fundação Mário Soares.
As cerimónias fúnebres do coleccionador e historiador começam nesta segunda-feira com o velório a partir das 18h na Igreja de São João de Deus, em Lisboa, e terça-feira será rezada uma missa às 14h na mesma igreja.
António Pedro Vicente nasceu em Julho de 1938, em Águeda, filho de Arlindo Vicente (1906-1977), advogado, artista plástico, resistente antifascista e candidato à Presidência da República pela Frente Democrática Nacional — desistiria a favor de Humberto Delgado. António Pedro Vicente licenciou-se pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, começou a coleccionar máquinas e fotografias na década de 1960 e doutorou-se em História pela Universidade de Paris-Nanterre já na década de 1970. Foi professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, “académico de número da Academia Portuguesa da História e sócio correspondente de várias academias internacionais, incluindo a Real Academia de História de Espanha”, detalha o IHC da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Nova, que comunicou a sua morte “com grande pesar”.
Foi conselheiro cultural na Embaixada de Portugal em Madrid e foi distinguido em 2001 com o Prémio Calouste Gulbenkian de História, tendo sido condecorado com a comenda da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada em 2015.
António Pedro Vicente tanto é autor de várias publicações sobre história portuguesa do século XIX e as suas relações com Espanha, França e Inglaterra, como de estudos sobre a História da Primeira República, como informa o IHC, bem como um especialista e apaixonado por fotografia que deixou lastro significativo nas instituições às quais entregou, por doação ou venda, a sua colecção. Neste âmbito, é um dos grandes responsáveis pela redescoberta da obra do fotógrafo Carlos Relvas (1838-1894), sendo autor de Carlos Relvas Fotógrafo (1984), o impulsionador daquela que pode ser considerada a primeira exposição de fotografia digna desse nome feita em Portugal.
É também graças a Vicente que estão em Portugal peças quase ausentes do mercado e que tornaram o museu do CPF um ponto de passagem do roteiro europeu do sector. “Tendo iniciado a sua colecção de câmaras fotográficas antigas num período em que este tipo de interesse era ainda raríssimo, conseguiu reunir exemplares hoje inexistentes no mercado internacional”, atesta o CPF. Assinou, nesta temática, Los Albores del Arte Fotográfico en Portugal (Espasa-Calpe, 1986), Arnaldo Garcez : Um Repórter Fotográfico na 1.ª Grande Guerra (CPF, 2000) ou D. Maria Pia e seus Fotógrafos (1988).
Na história política e diplomática, António Pedro Vicente publicou obras de destaque, como Espanha e Portugal. Um olhar sobre as relações no século XX (Tribuna da História, 2004), Guerra Peninsular 1801-1814 (Quidnovi, 2007) ou Anunciando as Invasões Francesas (Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2013).
Foi há 24 anos que encetou o processo de venda da sua colecção de máquinas ao CPF, que consistia em quase duas mil câmaras, algumas das quais tão raras que existem apenas duas ou três iguais no planeta. Além das máquinas, como escrevia o PÚBLICO na altura, a colecção inclui milhares de fotografias e centenas de documentos bibliográficos, o que permite através dela revisitar a história da fotografia. Entre as máquinas estão Polaroid, Kodak, Zeiss ou Leica, mas também câmaras daguerreanas "à tiroir" (sem fole), escopetas (máquinas usadas em espionagem, disparadas com um gatilho, ou ocultas em maços de tabaco), câmaras estereoscópicas, "folding" (com fole) e exemplares especiais como miniaturas e câmaras-brinquedo.
“Esta colecção nunca foi para mim um bem material", disse ao PÚBLICO há 24 anos. Já em 2001, numa entrevista, explicava que construiu a sua emblemática colecção “com muito gosto, muito amor, muita dedicação. E também aproveitando bem a época. As grandes colecções como esta foram feitas quando ainda não havia muitos coleccionadores, quando ainda havia um mercado de pequena procura e de alguma oferta. Este é um mercado raro”. Algumas máquinas custaram-lhe 15 mil reis, dizia evocando moedas antigas, outras 40 ou 60 escudos, exemplificava.
Quanto à sua colecção relativa à I República (1910-1926), tinha como destino o Museu da República, em Aveiro, mas após a doação para o que seria um dos pilares da instituição museológica, a autarquia de Aveiro desistiu em 2007 — depois de 14 anos de negociações — do projecto do museu, por dificuldades financeiras do município, e do acordo com António Pedro Vicente. O espólio, como descreveu o PÚBLICO à época, “é classificado por especialistas como a maior colecção de documentos sobre a vida política e a propaganda partidária da I República, ombreando, segundo uns, superando segundo outros, a colecção do falecido historiador Oliveira Marques”.
Esta é composta por bustos, bandeiras, fotografias, postais, gravuras, ilustrações, selos, moedas e medalhas, cada um dos quais “uma inesgotável fonte de informação da mais variada natureza” que mostra “aspectos até aqui quase desconhecidos da nossa vida colectiva do primeiro quartel do século XX”, lê-se no site da Fundação Mário Soares e Maria Barroso, onde o seu espólio (591 peças), alvo de estudo de Alfredo Caldeira em Enfim, A República! Colecção António Pedro Vicente encontrou finalmente a sua morada.