Ministério ou Mistério da Cultura?

Está na hora de as ruas serem ocupadas em nome das artes e de suas instituições, para Portugal não se tornar um país meramente cenográfico, de discurso histórico saudosista e exploração turística.

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Ao integrar uma mesa de debates na Alemanha, afirmei a chegada da extrema-direita ao poder no Brasil e o fim do Ministério da Cultura. Pareciam-me inevitáveis. Fui interrompido e corrigido por outro participante, sob o argumento de que isso seria impossível. As eleições vieram, sabemos quem venceu, o Ministério da Cultura foi extinto, e sua nova forma, secretaria subordinada ao Turismo, ficará marcada na história por repetir o pronunciamento de Goebbels, em conteúdo e forma.

Não se tratava de futurologia, mas de perceber no encaminhamento das narrativas sociais e políticas, pela maneira como as pessoas se colocavam em relação aos artistas e à cultura, que essas seriam as conclusões de suas indignações e indiferenças.

Já em Lisboa, em evento público, a então diretora do Mosteiro dos Jerónimos falou aos ouvintes, em um encontro com outros palestrantes, sobre a importância do turismo, dando como exemplos de cultura eficiente os sítios de patrimônio histórico. A reunião desses valores em mesma ideia, em sua justificativa econômica, deixou-me em alerta. Qual não foi o meu susto quando a sra. Dalila Rodrigues foi nomeada Ministra da Cultura.

O que leva cada turista a seguir rumo a outras terras é impossível de ser simplificado. Cada um o faz por seus próprios estímulos. E estes são tão plurais quanto o número de interesses: história, cultura, fé, aventura, conhecimento, estudo, passado, futuro, amizade, gênese, diversão ou outras particularidades. Ainda assim, possuem ao menos uma semelhança: certo estado de curiosidade. Se com mochilas ou malas, quartos ou hotéis, trens ou aviões, cronogramas calculados ou ao acaso pleno, não importa.

Vale, então, perguntar qual tipo de turista se deseja. A maioria segue comprando pacotes em agências, com percursos e calendários impossíveis, exagerados, pelos quais se visita o máximo de cidades e, uma vez nelas, quantidades infindáveis de monumentos e espaços históricos, preferencialmente, no menor prazo possível. Não é incomum visitas aos pontos turísticos de dentro do ônibus. Uma passada rápida, uma explicação resumida, fotos e, pronto, próxima parada.

O que esse tipo de turismo provoca nem sempre é percebido por quem nele acredita. No primeiro instante, as circulações e entrada de recursos financeiros indiscutíveis e necessários. O turista compra. Ele sempre compra: a lembrança para guardar, o presente para parentes e amigos, as encomendas, a roupa no outlet, o objeto decorativo e o que mais estiver disponível. Deslocam-se pelas ruas, compram bilhetes de espaços e eventos, almoçam, jantam, experimentam doces típicos, bebem (muito)... Ou seja, o turista gasta, e isso é ótimo para todos. Será?

Excesso de problemas

Os problemas trazidos pelo turismo de massa excessivo são diversos: consumo das estruturas, produção incontrolável de lixos, poluição diversa, desorganização do cotidiano, interferência na funcionalidade das cidades, aumento substancial da produção sonora, colapso nos serviços essenciais, diminuição de espaços para habitação. Os problemas se acumulam a outros, entre banais e sérios, e a rotina, agora cada dia mais cara, revela-se um inferno e custa muito ao Estado. Além de os sítios históricos serem os mais depredados, por vezes, com danos incontornáveis, algo que, certamente, a ministra conhece bem.

Trata-se do excesso próprio do nosso tempo. Fotos no Instagram, posts nas redes sociais, recordações e felicidades exibicionistas e quase nenhuma experiência e envolvimento com a cultura local em níveis mais profundos. Afinal, naquela loja semelhante a centenas de outras, o turista não encontrará a realidade de onde está.

O problema revelou-se tão sério que, em 2016, a Organização Mundial do Turismo (pertencente a ONU) realizou, em Londres, sua conferência sobre o assunto. Segundo o órgão, em 2030, os turistas deverão provocar 1,8 bilhão de viagens pelo mundo, cerca de 40% mais do que o registrado naquele ano. Em resposta ao caos surgiu a turismofobia. Na prática, a recusa da presença do turista manifestada em muitos cantos, alcançando contextos complexos e argumentos perigosos.

Por outro lado, o confronto com tal medo ergue sua contrarresposta: o convite ao turista para aproximações mais conscientes sobre o estar ali. Em 2017, foi definido pela primeira vez, pela OMT, o Ano do Turismo Sustentável para o Desenvolvimento, estimulando a importância econômica gerada aos países e culturas locais, mas com a acuidade de educar o visitante a uma convivência mais saudável.

A isso se nomeou Turismo Sustentável: quando o turista se envolve com as condições ambientais (respeitando a natureza), econômicas (por meio do entendimento das práticas e negócios que interessem ao local) e, por fim, sociais (aproximando-se, apoiando, estimulando as manifestações culturais e suas instituições).

Outro conceito menos popularizado e com diferente proposição, o Turismo Criativo tem sido apresentado pela UNESCO desde 2013. Partindo dos conceitos iniciais desenvolvidos por Greg Richards e Crispim Raymond, convida os turistas a perceberem o aprendizado não apenas sobre o adquirido, mas, sim, durante o próprio processo, de modo a tornar possível ampliar a relação com a cultura de maneira mais efetiva e consequente.

Transformações urbanas

Os novos costumes, as transformações urbanas e arquitetônicas, as mutações na fala e na linguagem dos corpos, as particularidades na reflexão sobre os acontecimentos em seus muitos níveis, as características entre gerações, a modernização ininterrupta em convívio com o passado... Enfim, a Cultura, dentre tudo isso, é o algo mais dinâmico e amplificador do contexto do qual faz parte. Ao mesmo tempo em que o transforma, suscita-lhe ser outro.

Entre as experiências recorrentes inclusas a essa qualidade de turista consciente estão as artes, por darem a conhecer como a cultura local lida com as questões complexas de forma crítica e dialógica.

Os caminhos oferecidos pelo novo Ministério da Cultura são deslocados da realidade, inclusive das vertentes mais atuais de como o turismo, a história, o patrimônio e a cultura podem se aliar, e em dissonância ao que precisa ser melhorado e aos acertos construídos. Muitos já discorreram sobre isso em artigos e manifestos, em especial, após o desligamento de Francisca Carneiro Fernandes, então presidente da fundação CCB.

Nomeações, sabemos, são inevitavelmente gestos de confiança e políticos. No entanto, as trocas e demissões precisam ser justificadas para disfarçarem a manipulação ideológica naquilo que pode ser perigoso: estabelecer freios e controles sobre os espaços de arte e cultura, para, com isso, conduzir dentro de certos limites as manifestações simbólicas com as quais teremos oportunidade de conviver. As instituições da arte, então, podem se tornar efetivamente espaços transitórios efêmeros, feito um sitio histórico ou arqueológico sob autoridade intelectual e estética.

O assunto rodou a Europa, e outros centros de cultura importantes ligados às artes performativas manifestaram-se preocupados com as aproximações e parcerias futuras firmadas, e mesmo esses continuam sem explicações plausíveis.

Ou seja, artistas, instituições e funcionários (em carta aberta divulgada) criaram um abaixo-assinado público; partidos de esquerda e progressistas manifestaram-se timidamente, e nada serviu para exigir do Governo as respostas devidas. A pressão vinda dessas esferas não deslocou o silêncio perturbador. Porque lhe falta a presença dos mais interessados: a população.

Sem a participação da sociedade, debater a gestão e as decisões da cultura parece desnecessário. Mas, em curto prazo, sabe-se que isso passará também aos mecanismos de financiamento público, circunscrevendo definitivamente o funcionamento da Cultura: pesquisa, criação, desenvolvimento, manifestação e acesso. A indiferença das pessoas poderá ser parte fundamental das consequências desse desmontar geral da artes performativas portuguesas.

Portugal tem se apegado, cada vez mais, às greves como ações coletivas de inconformismo e exigência. Está na hora de as ruas serem ocupadas em nome das artes e de suas instituições, para não se tornar um país meramente cenográfico, de discutível discurso histórico saudosista e mera exploração de turistas equivocados, enquanto artistas e instituições culturais sucumbem ao controle perigoso do Estado, e, juntos, nossa capacidade crítica, reflexiva e de imaginação. Fato é, certos ambientes, como o Ministério da Cultura, não devem ser espaços para euforias de turistas.

Sugestões de leituras:

> O Olhar Do Turista 3.0, de Jonas Larsen e John Urry. Edições Sesc SP, 2022.

> The Art Institution of Tomorrow: Reinventing the Model, de Fatoş Üstek. Lund Humphries, 2024

> The Abc Of The Projectariat: Living And Working In A Precarious Art World, de Kuba Szreder. Manchester University Press, 2021

> O Caminho Para O Fim Da Liberdade, de Timothy Snyder. Edições 70, 2020.

> Povo vs. Democracia: Saiba Porque a Nossa Liberdade Está em Perigo e Como a Podemos Salvar, de Yascha Mounk. Editora Lua de Papel, 2019.

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