Biblioteca Municipal Ary dos Santos: revoluções para que vos quero
“Temos de ser exigentes com o que oferecemos às pessoas, porque só estamos a contribuir para maior conhecimento e cultura se disponibilizarmos documentos, livros ou outros de assinalável qualidade.”
Na ampla e bem iluminada sala de entrada da Biblioteca Municipal Ary dos Santos, em Sacavém, onde ocorrem exposições e se encontram jornais e revistas para consulta, há uma parede de cor cinza-escura com frases do patrono da biblioteca. Li-as uma a uma, começando de cima:
Maria Rijo, a coordenadora da biblioteca, mostrou-me o espaço — inaugurado há oito anos e onde, anteriormente, funcionava o quartel dos Bombeiros Voluntários da cidade — e partilhou a sua paixão por livros, pela profissão e, sobretudo, por pessoas:
“Sou uma bibliófila e tenho a minha biblioteca pessoal, que estimo muito. O amor pelas bibliotecas tem muito a ver com os livros que lemos e que passam a fazer parte de nós. Aqui, na biblioteca, procuro conseguir fazer com que as pessoas adquiram hábitos culturais, nomeadamente de leitura, e que aproveitem os serviços públicos das bibliotecas, que são gratuitos, tendo sempre muito presente que a cultura, seja literatura, cinema, teatro, música ou pintura, é fundamental nas nossas vidas porque contribui para o desenvolvimento humano, quiçá para nos tornarmos melhores seres humanos e capacitados para compreender o outro, em vez de sermos seres humanos, por vezes, tão autodestrutivos.”
Maria acredita que, ao consumirmos cultura, seremos pessoas mais felizes, mais criativas e com pensamento crítico, algo que considera fazer muita falta atualmente. “Mas atenção, temos de ser exigentes com o que oferecemos às pessoas, porque só estamos a contribuir para maior conhecimento e cultura se disponibilizarmos documentos, livros ou outros de assinalável qualidade”, acrescenta.
Da parede cinza-escura ergue-se uma voz: “Serei tudo o que disserem: poeta castrado não!”
— Nos últimos anos, notou alguma mudança no comportamento dos frequentadores da biblioteca?
— Sim, notei. Há um antes e um depois da pandemia. As pessoas mudaram os seus hábitos e temos menos público nas atividades culturais organizadas pela biblioteca. Os fatores podem ser vários, mas muitas pessoas simplesmente deixaram de frequentar a biblioteca.
— Como se pode contrariar isso?
— Tentamos de várias maneiras. Esta zona não tem praticamente equipamentos culturais e pensei que as pessoas poderiam vir à biblioteca também para ver cinema ou teatro, por exemplo. E temos conseguido fazer aqui muitas atividades e projetos que saem um bocadinho fora do âmbito da leitura propriamente dita. Contudo, tudo é leitura. Nós, quando vemos um filme, também temos de o ler e interpretar. Há um projeto aqui, por exemplo, que se chama Ler’Arte, que aposta na formação dos leitores nas literacias artísticas, seja através de exposições de fotografia ou artes plásticas, cinema e fotografia. E isso é uma coisa que eu gosto muito de fazer: misturar tudo, mas com um propósito, não simplesmente misturar por misturar. As pessoas têm gostos diversos. Eu posso gostar de ler romances, mas há outra pessoa que só gosta de cinema e outra que só gosta de artes plásticas e outra que só se interessa por banda desenhada.
— E está a correr bem?
— Sim, muito bem. Por exemplo, temos uma comunidade de mulheres que fazem panos-postais, em que procuram transmitir diferentes mensagens através de imagens, desenhos ou palavras gravadas com fios de várias cores. O projeto é temático, pode versar sobre questões do ambiente ou de género, de violência doméstica, etc. E já houve pessoas dessa comunidade que também já vieram ao cinema. Ou seja, a ideia é um bocadinho a de formar comunidades por interesses, mas que depois as comunidades se cruzem nas diversas ações da biblioteca.
“Que o presente é um tempo que se vai e o futuro é o tempo resistente”, sussurra Ary dos Santos.
Maria quer promover a leitura junto de todas as pessoas. Sem exceção. “Não é nada fácil, nunca o foi. Mas nos dias de hoje, particularmente, as cidades, sobretudo as periferias, recebem muitos imigrantes e as bibliotecas têm de se preparar para chegar às pessoas a que chamamos de ‘não-público’. Mas há um longo caminho a percorrer.”
Para ir ao encontro dessas pessoas, a Biblioteca Municipal Ary dos Santos desenvolve atividades exteriores, como a Biblioteca no Bairro e as Bibliotecas em Sua Casa. Resultado: “Há muitos participantes de comunidades específicas que já participam noutras comunidades, e isso é muito bom de se ver”, partilhou, com satisfação, Maria Rijo.
“Nas minhas mãos a madrugada abriu a flor de abril”
Uma das atividades de maior sucesso é a Comunidade de Leitores, que já vai na 22.ª edição, um projeto que contribui não só para a formação de leitores, mas também para combater o isolamento social. “Começou na Biblioteca Municipal de Loures com uma colega. Depois, a certa altura, a chefia daquela biblioteca desafiou-me a agarrar no projeto.”
O grupo de leitores, entre as 25 e as 30 pessoas, é extremamente assíduo. “Somos todos amigos, já nos conhecemos há muitos anos, E isto é quase como um dia sagrado para nós.” O tema é escolhido por Maria, em conjunto com duas colegas, que a ajudam no projeto. Para este ano, o tema são as revoluções. “Vamos fazer assim umas interrogações: ‘Revoluções para que vos quero?’. Porque a partir dos livros fala-se de muita coisa, não é? Olhe, vou dar-lhe um exemplo: as pessoas da Comunidade de Leitores vão fazer teatro comunitário com um encenador que os vai dirigir nesta aventura. Ou seja, vão experimentar outra arte, algo que muitos nunca fizeram ou pensaram que não conseguiam. E há outros que sempre quiseram fazer teatro, mas que não tiveram oportunidade. Para mim isto é maravilhoso”, acrescentou a coordenadora.
“Meu amor, meu amor, / Minha estrela da tarde”, sussurra o poeta.
Quando visitei a Biblioteca Municipal Ary dos Santos, ao início da tarde, vi uma dúzia de crianças a realizarem diversas atividades no espaço. Brincavam, jogavam, corriam, vi até um par deles com livros na mão. “Os miúdos vêm nos intervalos das aulas para jogar e brincar. Podem até nem ler livros, mas só estarem por aqui já dá vida à biblioteca. Aos sábados, já é diferente: a zona das crianças fica repleta, há muitas famílias. E, nas férias, são muitos os sikhs que vêm pôr os filhos na biblioteca.”
Maria Rijo sugeriu-me o livro Coreografia dos Sentidos – Como se fora uma invenção minha, de Manuel Veiga. Durante a nossa conversa sobre livro e autor, apontou o poema preferido, que aqui deixo. Chama-se Poema sem rima.
“Há neste tempo um prenúncio / Uma espera que germina / Uma fala inesperada... / Um murmúrio, uma corrente. / Há um rio que se advinha. / Um rosto. Um desatino / Uma ferida que sangra / E uma sede desatada...
Há um sopro em cada esquina. / Uma promessa. Uma viola. / Uma canção que se afina. / Uma passagem. Uma senha / E uma luta pegada. /
Há um poema sem rima. / Uma viagem. Uma flor. Uma arma. / Uma fronteira vencida. / Há um vento que se anuncia / E uma dor aziaga...
Há um barco que se anuncia. / E há uma ousadia sonhada...
Há um lume insubmisso. / Um hino. Uma bandeira / E esta paixão magoada...”
Na despedida, pedi à coordenadora que recordasse um evento memorável ocorrido na biblioteca.
“A primeira edição da Bienal de Poesia: Poesia à Solta, que aconteceu em 2019. Esta ideia surgiu por causa do nosso patrono, o poeta Ary dos Santos, figura maior das letras no século XX. Pensámos estender o projeto à cidade de Sacavém, para que ela fosse conhecida por boas razões, por exemplo ser a cidade da poesia. Foram três dias de atividades ligadas à poesia, com uma feira do livro de poesia, conversas com poetas para todos os públicos, espetáculos e música e poesia para crianças e adultos, apresentações de livros de poesia e um sunset poético com karaoke de poesia em que demos voz aos poetas locais. É inesquecível e gratificante ver rappers da Quinta do Mocho nos espetáculos de poesia e perceber que eles levam aquilo a sério e sentem a responsabilidade de participar. E daí acontece um intercâmbio entre eles e os escritores. E essa partilha entre todos é muito importante. É assim que as pessoas evoluem. A inclusão tem muito que se lhe diga. Há projetos de inclusão que excluem e não incluem. E eu acho que isto que aqui fazemos tem mais valor do que especificar programas para migrantes ou sectores da sociedade”, conclui Maria Rijo.
E assim se desconstroem conceitos e constroem pontes. “Revoluções para que vos quero?”
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990