Queda de Bashar al-Assad é “novo começo histórico” para a Síria

Sírios celebraram nas ruas da capital e de outras cidades, enquanto milhares eram libertados das prisões. Coligação de rebeldes diz que vai transferir o poder para um governo transitório.

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Festejos em Damasco. “Finalmente o regime caiu. Agora, o povo da Síria está unido” Agência Reuters, Joana Bourgard
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Poucos sírios terão pregado olho na noite de sábado para domingo. Bashar al-Assad, o ditador que herdou o poder do pai há 24 anos e que escolheu destruir a Síria, matar centenas de milhares de sírios e levar milhões a fugir em vez de ouvir manifestantes desarmados não esperou em Damasco pela chegada dos rebeldes. Assad fugiu do país, as forças da oposição entraram na sua capital e o Estado-maior das Forças Armadas comunicou aos militares que ainda não tinham despido a farda que o regime acabou.

Dia 8 de Dezembro de 2024: a Síria está “livre de Assad”, anunciaram, já em Damasco, os rebeldes que há apenas uma semana e meia lançaram uma ofensiva a partir de Idlib, no Noroeste, e que, dia após dia, assumiram o controlo das cidades mais importantes do país a uma velocidade estonteante.

Parte da noite foi passada a libertar milhares de presos de Sednaya, a grande prisão militar dos arredores de Damasco onde em 2017 os Estados Unidos acusaram o regime de estar a enforcar 50 prisioneiros por dia e de já ter incinerado milhares num edifício do complexo prisional modificado para servir de crematório. Enquanto isso, as redes sociais enchiam-se de vídeos de soldados a despir as fardas e a abandonar as suas posições junto ao Palácio Presidencial ou à residência de Assad.

“Damasco foi libertada e o tirano Bashar al-Assad foi derrubado, e os prisioneiros oprimidos nas prisões do regime foram libertados”, disse um porta-voz das forças lideradas pelos islamista do Hayat Tahrir Al-Sham (HTS) em directo na televisão estatal. “Pedimos às pessoas e aos combatentes que protejam todos os bens na Síria Livre... Viva a Síria livre para todos os sírios de todas as seitas.”

Um comunicado no mesmo tom foi publicado pelo Comando das Operações Militares no Telegram. “Para os deslocados de todo o mundo, há uma Síria livre à vossa espera”, pode ler-se ainda. Pelo menos 5,6 milhões de sírios fugiram do país desde a revolta de 2011.

Quando o dia nasceu, milhares de residentes de Damasco saíram à rua para confirmar com os seus olhos e para festejar. Em Homs, talvez a cidade que assistiu às maiores manifestações contra o regime, há 13 anos, e uma das que mais sofreu com a brutalidade sem limites da repressão, baptizada pelos sírios de “capital da revolução”, houve música e celebrações. “Assad foi-se, Homs é livre” e “Viva a Síria e abaixo Bashar al-Assad”, cantaram e dançaram milhares de habitantes, descreve a agência Reuters.​

A meio caminho entre Alepo, principal cidade do Norte, conquistada há uma semana, e Damasco, Homs era vista como fundamental para derrotar o regime, já que garantir o seu controlo significava cortar a ligação entre a capital e a zona costeira de Latakia e Tartous (o porto onde a Rússia tem a sua única base no Mediterrâneo), reduto da minoria alauita (o ramo do xiismo dos Assad) e único verdadeiro bastião da ditadura. Afinal, Damasco e Homs caíram quase em simultâneo.

"Todos os cantos do país"

As forças da oposição síria estão agora a espalhar-se por “todos os cantos do país”, disse o investigador sírio Thomas Van Linge à Al-Jazeera. “Estão a ser derrubadas estátuas em Latakia. Há relatos de forças da oposição a entrar na província de Tartus”, descreveu. “Não há uma única cidade ou região na Síria onde Assad ainda possa reivindicar ser presidente neste momento... ele não controla um único quilómetro quadrado do país.”

É verdade, as forças da oposição entraram em Tartous e há imagens de uma pequena multidão dentro da sede do governo regional. “Estas instituições são nossas, os funcionários públicos permanecerão nos seus cargos, apelamos a todos para que mostrem contenção e não saquem nada. As armas irão para o exército sírio... Vamos construir o nosso exército nacional”, diz um homem de camuflado que outro ergue aos ombros, num vídeo partilhado na rede X por Rami Jarrah, activista anti-regime que fundou, no exílio, a organização ANA PRESS. “O povo sírio é um só, um só, um só”, cantam os restantes.

Durante a noite, muitos refugiados no Líbano e na Jordânia começaram a meter-se nos seus carros, sem esperar pelas palavras dos rebeldes. Amã tinha encerrado a fronteira com a Síria na sexta-feira, mas reabriu-a na manhã deste domingo. Da Turquia também chegam imagens de famílias em fila junto a um posto fronteiriço, empurrando malas.

Segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, uma organização ligada à oposição, Assad deixou o país a bordo de um avião da Syrian Air que descolou do aeroporto de Damasco na altura em que a cidade era tomada pelos rebeldes. Mais tarde, num comunicado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo confirmou que o Presidente tinha deixado a Síria e deixado "instruções" para uma transição pacífica. A imprensa russa diz que está em Moscovo.

O primeiro-ministro de Assad, Mohammad Ghazi Al-Jalali, que já fizera uma declaração para dizer que ficaria na Síria para “assegurar” o funcionamento das instituições, surge num vídeo a ser escoltado por homens armados que o levavam para um hotel onde se reuniria com os comandantes da aliança de rebeldes.

Esta coligação disse estar a trabalhar para garantir a transferência do poder para um governo transitório, agora que “a grande revolução síria passou da fase de luta pelo derrube do regime de Assad para a luta pela construção conjunta de uma Síria à altura dos sacrifícios do seu povo”.

"Catorze longos anos de horror"

No Irão, os media estatais relatam que “elementos armados” entraram no edifício da embaixada iraniana em Damasco e há imagens que mostram salas destruídas e fotografias rasgadas de Qassem Soleimani, o poderoso comandante da Força al-Quds, dos Guardas da Revolução iranianos, assassinado em 2020 num ataque ordenado por Donald Trump em Bagdad, e Hassan Nasrallah, o líder do Hezbollah libanês, que Israel assassinou em Setembro, em Beirute.

A par do Irão e do Hezbollah, que até há poucos meses era a milícia estrela do chamado “eixo de resistência” regional criado por Teerão, Assad só sobreviveu durante tanto tempo graças à Rússia, que em 2015 deu início a uma ampla intervenção militar para o apoiar. Na sexta-feira, Moscovo apelou aos russos para deixarem a Síria.

As Nações Unidas pediram precaução e sublinhou que terão de ser criadas condições para acolher estas pessoas no seu regresso. Entre refugiados e deslocados internos, 12 milhões de pessoas foram forçadas a fugir das suas casas desde 2011. Uma grande parte nunca regressou.

“Reitero o meu apelo à calma e a evitar a violência neste momento sensível, protegendo simultaneamente os direitos de todos os sírios, sem distinção”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. “Após 14 anos de guerra brutal e a queda do regime ditatorial, o povo da Síria pode hoje aproveitar uma oportunidade histórica para construir um futuro estável e pacífico”, declarou Guterres.

“O povo sírio deve poder encarar este momento histórico como o fim de décadas de repressão organizada pelo Estado”, afirmou Paulo Pinheiro, presidente da comissão de inquérito das Nações Unidas sobre a Síria, descrendo a queda de Assad como “novo começo histórico”.

“Hoje é o fim de 54 anos de reinado da família Assad na Síria. Este é o único regime que conheci durante toda a minha vida”, disse ao jornal The Guardian o médico Zaher Sahloul, um sírio-americano que organizou inúmeras missões médicas na Síria, muita em Alepo para ajudar hospitais bombardeados pela aviação russa.

“Não costumo chorar muitas vezes desde que sou adulto, mas hoje chorei. Foram catorze longos anos de horror. Este é o nosso momento do Muro de Berlim”, afirmou Sahloul. “Há alguém que não esteja a chorar neste momento?”, perguntava na rede X Jihad Yazigi, editor da newsletter Syria Report.

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