Filme perdido de John Ford apareceu no Chile um século depois

Depois de restaurado, The Scarlet Drop (1918), um western protagonizado por Harry Carey, foi já exibido, em Setembro, no Festival de Cinema Recuperado de Valparaíso.

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The Scarlet Drop foi um dos 26 westerns que John Ford rodou com o actor Harry Carey DR
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The Scarlet Drop, o emblemático filme do cineasta norte-americano John Ford (1894-1973) realizado em 1918 e perdido há mais de um século, surgiu este ano entre o pó de um armazém de Santiago, capital do Chile, escondido entre um lote de rolos de filme antigos.

Em Janeiro passado, o académico chileno da Universidade de Viña del Mar, Jaime Córdova, comprou um lote de filmes a um antigo coleccionador do bairro de Providencia, na capital, que desconhecia o seu conteúdo e do qual se queria livrar, depois de os ter mantido armazenados mais de quatro décadas. Depois de rever o material, Córdova percebeu que tinha em mãos nada mais, nada menos do que The Scarlet Drop, um dos 26 westerns que Ford filmou com Harry Carey entre 1917 e 1921, para o estúdio Universal.

The Scarlet Drop (A Gota Escarlate, em tradução literal), que o realizador assina ainda como Jack Ford, conta a história de um desertor da Guerra Civil, que acaba a integrar um bando de salteadores. Nele, Harry Carey (1878-1947) contracena com Molly Malone (1888-1952). O actor fora cowboy na vida real, antes de assumir essa personagem no cinema como uma extensão natural da sua vida. Foi uma das primeiras estrelas do cinema mudo, com mais de uma centena de filmes rodados nos anos 10, entre eles vários títulos assinados pelo pioneiro David W. Griffith.

De Harry Carey, disse John Ford em 1948, um ano após o desaparecimento do actor, que tinha sido “a estrela brilhante do primeiro céu do western”. Carey era o “cowboy autêntico”, “uma espécie de vagabundo sobre a sela”, acrescentou o realizador em entrevista a Peter Bogdanovich.

Como encontrar um Santo Graal

"Não creio que algo tão importante como encontrar um filme perdido de John Ford volte a aparecer na minha vida. Sempre se admirou o trabalho de Ford, mas encontrar um filme que, ainda por cima, estava perdido? É como encontrar um Santo Graal", destacou Jaime Córdova na quinta-feira à agência Efe, numa entrevista telefónica. "Todas as descobertas são circunstanciais. Muitas vezes consegue-se obter informações de alguém que tem filmes numa feira ou cujo pai tinha sala de cinema ou era coleccionador e quer vendê-los", acrescentou.

O filme do lendário realizador, seis vezes vencedor de um Óscar, foi submetido a um minucioso processo de reparação que durou meses e incluiu a limpeza com álcool isopropílico e álcool de melaço, necessários à conservação dos materiais cinematográficos. As emendas foram também refeitas e digitalizadas em 4K (ultra alta definição) na Cinemateca Nacional do Chile.

"Não lhe quero chamar restauro. Obviamente que houve uma reparação no suporte do filme, mas a imagem não sofreu qualquer intervenção. Se virem o trailer, a qualidade da imagem do nitrato é extraordinária", frisou Córdova. "O nitrato arde espontaneamente a 40 graus de temperatura, como se estivesse em processo de decomposição, mas quando abri as latas o filme estava perfeito. São reviravoltas do destino, que permitem que alguns filmes sobrevivam e outros não", concluiu o orgulhoso descobridor.

O filme de Ford, um dos cineastas mais influentes da história e autor de clássicos como O Vale Era Verde (1941) ou A Desaparecida (1956), conserva as tonalidades originais de 1918, tons rosa, azul e ocre, característicos da técnica utilizada na época para dar cor aos filmes e evitar o monocromático do preto e branco.

Córdova decidiu manter as manchas de fungos na fita devido à sua idade porque reflectem "a marca do tempo". "Faz parte do charme. Tem 106 anos e tem todas estas marcas históricas", lembrou.

O filme, que aborda questões pouco exploradas na época, como a desigualdade social, a luta de classes ou a marginalização, foi apresentado de forma inédita no passado mês de Setembro no Festival de Cinema Recuperado de Valparaíso.

"Alunos meus disseram-me: 'Professor, agora compreendo a natureza fordiana do cinema de Ford', ou seja, os rituais, as situações melancólicas, as diferenças sociais, os anti-heróis e aquela fotografia extraordinária", contou ainda Córdova. O académico lamentou, no entanto, que "no Chile ninguém lhe tenha dado importância" e que "poucas pessoas sabem quem é John Ford e a sua importância para o cinema". "Quem sabe se algum festival europeu terá interesse em exibi-lo (...) O que interessa é que um filme de um mestre como Ford esteja novamente disponível", concluiu.