Um Pouco Mais de Azul: a palavra da semana é “prosápia”
O que fazem um jornalista, um economista e uma poeta, neste episódio do podcast Um Pouco mais de Azul?
Rita Taborda Duarte vai abordar a crise de narração do coreano Byung-Chul Han; Francisco Louçã vai tratar da arte política da ponderação, vai referir-se aos estratagemas do Chega e às vicissitudes orçamentais; e Fernando Alves trata de sátiros, galos e galarós com esporões de guerra, e prosápia, claro!
O podcast Um Pouco Mais de Azul é um podcast independente da rede PÚBLICO. Está disponível às quintas-feiras, quinzenalmente, em todas as aplicações para escuta de podcasts — como a Apple Podcasts ou o Spotify — e na área de podcasts do site do PÚBLICO.
Em baixo pode ler excertos do episódio desta semana.
Prosápia presidencial
Francisco Louçã
A mais de um ano das eleições presidenciais, a excitação candidatal está a ofuscar as autárquicas e a ocupar o espaço público. A bem dizer, a estratégia de vários candidatos (e nenhuma candidata até agora) é o que promove essa precipitação. E é o resultado de alguma prosápia, o que determina a forma dos pré-anúncios, pois de conteúdo não há nada: entre a dúzia de candidatos a candidatos, nenhum se ocupou até agora de explicar o que pretende para o país. Todo o discurso é sobre o próprio protocandidato e as superiores razões que o levam a submeter o seu nome aos ansiosos cidadãos. Essas razões são enunciadas de quatro modos distintos.
Em primeiro lugar, há os candidatos que vão ponderar. Os mais sofisticados até explicam que ponderam agora se virão a ponderar no primeiro trimestre de 2025. Se tal precisão de calendário sugere aos leitores que a decisão está tomada e até que a podem adivinhar, não são os únicos. Nesse jogo destacam-se para já Marques Mendes e António José Seguro. Ambos pedem que lhes perguntem amiúde – no caso de Mendes, até sabemos o dia e hora da pergunta – se já ponderaram ou se confirmam que vão ponderar, o que nos vão revelando como se connosco partilhassem um segredo solene: sim, vão ponderar. E devemos ficar aliviados por essa prova de consideração para com o povo.
Há uma segunda categoria, que são os que não confirmam nem desmentem, desde que não nos esqueçamos deles. São três: Augusto Santos Silva não se põe de fora nem dentro, António Vitorino diz que não diz que não nem que sim e Mário Centeno está focado no seu trabalho e admite focar-se noutra missão, se assim o vento o empurrar.
O terceiro grupo de candidatos recebeu um chamamento da Pátria. Para Durão Barroso e Paulo Portas, o primeiro sempre audível sobre o assunto e o segundo mais recatado, o chamamento não está a ser suficientemente forte, como se nota. Mas o chamamento é audível para Santana Lopes, que até acha que ganharia, e para o almirante Gouveia e Melo, que foi chamado pelo prime-time do tempo das vacinas e que continuou chamado pelo seu próprio dever de ser Presidente. É desagradável que a Pátria tenha decibéis diferentes para candidatos tão apessoados, mas é a vida, eles cumprirão.
E depois há o quarto tipo de candidato, o que foi chamado por Deus. É discutível se Deus está acima ou abaixo da Pátria, coisas de republicanos, mas quem ouve esse apelo só pode reconhecer que é uma razão superior. É Ventura o escolhido, como tem feito questão de lembrar aos incréus. Não se sabe se essa conversa divina foi feita de uma só vez, delegando no homem o dever de ser candidato a tudo, designando-o assim para uma espécie de assinatura candidatária, ou se se vai renovando em sucessivas instruções por cada eleição. O que é certo é que Ventura, que já apoiou o almirante, percebeu que assim não seria candidato, uma chatice – talvez tenha sido Deus que lhe chamou a atenção para o erro e a incongruência e o pôs de novo no bom caminho.
O que nenhum deles até agora fez é o mais óbvio: dizer simplesmente “sou candidato” e, já agora, em prol de quê. Só que para isso têm de ponderar, decidir e colocar-se de dentro, o que é muito inconveniente, enquanto o mundo, espantosamente distraído, pensa noutras coisas.
Sátiros, galos e galarozes com esporões de guerra
Fernando Alves
Depois de tomares mil cuidados, acautelando que não esbarras num sátiro, meio humano, meio bode, nem te perdes nos meandros de um bosque, ainda que ficcional, retira da estante, persignando-te mal se insinue na tua sombra o bafo do demo, o romance de Aquilino Andam Faunos pelo Bosque. É uma obra também tocada pela brisa da Nave e que a páginas quarenta e muitas, quase cinquenta, conforme a edição, te escancara o temor das famílias da vila e a sapiência do padre Januário, aquele que vai espalhando no adro da igreja romana os faunos de vasta mitologia, liminarmente descritos como “animais lascivos e cornúpetos”. Enquanto os alegados faunos desassossegam as moças da vila, os galos, galifões de capoeira (por mais penacho) dão as horas como se esconjurassem a noite. As quatro ou cinco páginas do inesquecível concerto emplumado parecem embrulhar a palavra “prosápia”, escolhida para o podcast de hoje.
Não tenho tempo nem atrevimento para vos apresentar, galo por galo, os solistas de capoeira que acordam a serra da Nave. Como muitos hão-de lembrar-se, o primeiro a “deitar alvorada” é o galo da Rita Cismas, um “churro galaroz com esporões de guerra e polainas de montador”. Cantou uma vez e logo respondeu, “em falsete”, como o descreve Aquilino, “o pernaltudo da Rosa Salamim, que tinha um penacho mais rútilo e vistoso que mestre de filarmónica”. Em pouco mais de um parágrafo está espalhado o maior alvoroço nas capoeiras. É delicioso o modo como o autor especula quanto ao sentido da fabulosa variedade de notas dos galos do povoado, num primeiro instante talvez trocando saudações e saudando o dia que nasce. “Quem sabe lá”, interroga-se o narrador, “se não cantavam com a prosápia de esporear a noite.”
Cai bem ao macho de crista sacudir a prosápia com um bater de asas largas e peito feito. Em qualquer tribuna, a prosápia é uma figura de belo efeito, um modo de exibir a espora estilística. Em qualquer bancada. Em qualquer debate na hora nobre. Nos mais recentes houve nota de bazófias emplumadas e proclamações de meter pena.
A prosápia é, mais do que o fino recorte da jactância vocal, um modelo de presunção que aguça o estilo. Uma elegância afectada, uma vez por outra. Jamais um afecto elegante.
Aquele que cai no prosapismo (conceito que acabo de criar, querendo significar priapismo da fala) jamais é afectuoso; antes se revela afectado.
A palavra prosápia pode sublinhar, também, um halo de linhagem. Se Vossa Excelência permite, um lencinho decorativo no bolso do peito da jaqueta não é um salvo-conduto para o exame de latim. Por mais extravagante que se revele a dobra, em coroa de quatro pontas ou flor-de-lis, em rosa dupla ou enrolada, um galaroz é, no essencial, um garnisé de peito feito.
Estão por estes dias, em ponderação, coleccionando apoios futuros e argumentos que lhes sustentem a prosápia em sendo tempo dela, como quem colecciona lenços de bolso ou penas de pavão, um almirante e vários paisanos. Ficai sabendo, todos, analistas e porta-vozes, que estar a pé de galo é uma figura náutica. Está um navio a pé de galo, se for lançado segundo ferro ao fundear. Serve talvez esse movimento para garantir uma ponderação mais funda. O que for virá à tona. Nem que seja um peixe-galo.
Em terra firme, outros ponderam a liberdade de cantar de galo sem assustar a capoeira. Afinam a prosa. Para quando chegar o primeiro milho da prosápia. Mestre Aquilino traduz o que eles dizem, do alto do poleiro. O que hão-de dizer em sendo disso tempo.
“Eu canto”, respondia um ao largo, “e a comadre raposa desata a fugir”
“Eu canto”, tornava outro, “e o Sol deita a galopar pelas estradas do céu”
“Eu canto e não há galinha que me ouça que não fique a suspirar por mim” – dizia um terceiro.
“Bazófia! Bazófia! Na minha bandada sou rei! Viva quem é rei!”
“Viva… mas é o rico dia que está a romper!”
“Louvores ao Senhor que está a romper! Viva! Viva!
E erguiam todos “os mais joviais cocoricós”.
Da prosódia à prosápia: A Crise da Narração, de Byung-Chul-Han
Rita Taborda Duarte
Prosápia: é a palavra que, neste novo episódio de Um Pouco Mais de Azul, nos serve de gatilho. Proponho um livro que lhe está nos antípodas e que insiste na necessidade de regressar às formas narrativas, para a apreensão e percepção do mundo na sua complexa lógica social: A Crise da Narração, o mais recente ensaio do filósofo germano-coreano Byung-Chul Han. Tempo e memória implicados na arte de contar entrelaçam-se para formar a identidade, individual e colectiva, confrontando-se com os modos modernos de comunicar, aglutinados pela lógica capitalista. A palavra “prosápia”, pela sua linhagem genealógica, começa por significar ascendência, estirpe de famílias que se alinham no fio do tempo, por um enfileirado contínuo de antepassados briosos. Daqui à vaidade heráldica foi um eis, lume de um raspar de fósforo: a exuberância da chama, seguindo a faísca e logo o apagar mortiço de um fogo que já prometia ser fátuo. A palavra – prosápia – inchou, então, de imodéstia sobranceira e o sentido figurado passou a sentido primário: vaidade e orgulho de quem é cheio, tal um ovo, de si mesmo. Prosápia ou bazófia, apontando o orgulho com que se esvazia o discurso em forma de assim ou de assado, o que para o caso tanto faz. Lembrando Alexandre O’Neill, que, aliás, faria, se fosse vivo, cem anos, seria caso para dizer que “alguma coisa se passa /entre a cortina e a vidraça”: Sim, é a mosca varejeira… Bom seria desalinhar as letras e preferir à prosápia a prosódia, mas a realidade, como dizia o escritor português que mais prezo, pois claro, “é muito abusadora”… O mais recente ensaio do filósofo Byung-Chul Han fala-nos, no fundo, dessa distância que vai da prosápia à prosódia ou mesmo à prosa, se for escorreita e com sentido, do espaço vazio que existe entre o paleio e o pensamento, da diferença abissal entre informação e narração. Fala-nos, na verdade, do hiato que separa a pressa daquilo que requer tempo. O livro saiu este ano, 2024, pela Relógio d’Água, e tem a tradução de Gilda Lopes Encarnação. Num ensaio anterior, Sociedade do Cansaço (Relógio d’Água, 2014), Han referia-se às consequências de um “excesso de estímulos, informações ou impulsos, transformando radicalmente a estrutura e a economia da atenção”. Para este turbilhão se arrastou a comunicação, a linguagem: o discurso perde o pensamento para a informação, e cedo se torna tão-só estímulo. Passámos da prosódia ao prosaico; e do prosaico à prosápia. Os discursos interessam pouco pelo que dizem, por exemplo, sobre insegurança ou a falta dela: fazem somente brilhar a palavra-isco, para atiçar o conceito-slogan. Em A Crise da Narração, Byun-Chul Han explica que o frenético excesso comunicacional e a cadeia de consumo de informação (e com ela a desinformação) cresce em proporcionalidade inversa não só à de narração, como à de criação de um eu imerso socialmente. Ao contrário da narrativa, inclusiva e agregadora, a informação, diz-nos Han, é contingente e consumível. Por isso, a quase irrelevância para a percepção dos dias entre a veracidade ou falsidade informativas: uma e outra são os degraus somente para o degrau seguinte de uma escada de Esher que não chegará a lado nenhum. O que nos cria memória – e com a memória vem a identidade – não é a enumeração de factos ditados em cascata, mas a apropriação do dito, da história, do discurso. Ao substituir o narrar pelo dizer, ou pelo informar, pouco mais sobra do que a prosápia de enfileirar palavras, para deixar a atenção recair sobre quem diz. As narrativas, escreve Han, estão “cada vez mais despojadas do seu carácter político”, incapazes de “desenvolver forças aptas a fundar uma comunidade”. Sem narrativas, sem narração, o discurso, também o discurso político, está rendido ao storytelling comercial. Em última análise, diria, à prosápia “que não reconduz — como preconiza Han — à comunidade que urgia melhorar, mas ao nosso próprio ego”. Ou ao ego daqueles que discursam em horário nobre para nada dizer sobre coisa nenhuma. Termino com uma história contada por Byung-Chul Han no livro, mas numa outra versão, que prefiro, recolhida por Jean-Claude Carrièrre, em Tertúlia de Mentirosos (Teorema, 2000):
“Numa pequena cidade onde vivia uma comunidade judia, havia uma cerimónia especial, instituída há muito tempo, que se celebrava na floresta de trinta em trinta anos. Um velho rabino, que conhecia com precisão o ritual da cerimónia, transmite-a, à hora da morte, a outro rabino. Quando chegou a data, este conduziu um pequeno grupo de fiéis à floresta, ao local próprio, e celebrou a cerimónia exactamente segundo o rito. Depois, foram todos para casa. Passaram os anos. Quando voltou a ser altura da cerimónia, trinta anos mais tarde, o rabino tinha, por sua vez, morrido. Da cerimónia anterior já só restavam vivos três ou quatro fiéis que partiram para a floresta com uns quantos neófitos e um outro rabino. Chegados à floresta, foi-lhes difícil recordar-se do sítio exacto. [...] Por fim, escolheram um local, sem estarem completamente seguros de ser aquele, celebraram a cerimónia segundo os ritos e voltaram para casa.
Trinta anos mais tarde já só restavam vivos alguns dos neófitos de outrora. Sob a direcção de um novo rabino, acompanhados por um grupo de jovens, partiram de novo para a floresta. Desta vez foi-lhes impossível reconhecer sequer uma clareira. Tudo tinha mudado, tudo se misturava nas suas memórias. E mesmo o rito da cerimónia lhes parecia incerto, impreciso (...).
Procederam o melhor que puderam e voltaram para a cidade. Trinta anos mais tarde um novo grupo, guiado por um novo rabino, aventurou-se na floresta. Tinham ouvido falar de uma cerimónia importante que outrora se realizava. Em que dia? Não se sabia ao certo. O rabino e os fiéis deambularam pela floresta durante duas horas, à chuva, para celebrarem a cerimónia, depois voltaram para casa. Reencontraram-se na sinagoga. Um dos fiéis, desanimado, disse:
– Esquecemos tudo. Da próxima vez, já nem sequer vale a pena voltar à floresta.
– É verdade – disse o rabino. Esquecemos todos os pormenores da cerimónia. Mas nem tudo está perdido. Ainda nos resta uma boa razão para estarmos satisfeitos.
– Porque havíamos de estar satisfeitos? – perguntaram os fiéis.
– Porque poderemos sempre contar a história.” (p.396-7)
A pergunta com que vos deixo hoje é então: e se já não tivermos sequer história para contar, o que é que nos sobra, afinal?
Byung-Chul Han
A Crise da Narrativa (trad. Gilda Lopes Encarnação)
Relógio d’Água
2024