Diário de bordo: como é criar um jogo de tabuleiro?

Um pouco sobre o processo que deu origem ao Game Creator Set, um jogo que deixa que os jogadores criem os seus próprios jogos de tabuleiro — e o que é ser game designer em Portugal.

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Como é criar um jogo de tabuleiro? Getty images
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Podem nunca ter pensado nisso, mas existem designers de jogos de tabuleiro profissionais, tal como existem de videojogos. Alguns trabalham nas duas esferas, pois a relação é inegável — saber fazer protótipos de jogos de tabuleiro ajuda a criar videojogos. Os game designers são aquelas pessoas que definem o sistema de jogo, principalmente as mecânicas, economia de jogo, sistemas de progressão e feedback e por aí fora, sem excluir as dimensões narrativas.

Não estou a falar de design gráfico ou ilustrações, mas mais dos sistemas e da arquitectura do jogo. Normalmente, a parte mais visual ou estética surge depois, com o continuar do desenvolvimento do produto, e são criadas por outros profissionais. Mas claro, existem sempre excepções, e num bom projecto tudo deve ser desenvolvido de forma integrada. As narrativas podem surgir em simultâneo ou detalhadas por outros especialistas. Por estamos a falar de jogos analógicos, a materialidade e a dimensão de design de produto são igualmente determinantes. Cada vez mais a presença de mesa e a tridimensionalidade dos componentes importa.

Poucas pessoas em Portugal trabalham nisto do game design analógico a tempo inteiro, e quem consegue atingir esse estatuto profissional habitualmente trabalha para fora. Os profissionais desta área que trabalham para o mercado especializado de hobby tendem a ser freelancers e assumir isto como part time.

Ainda temos um longo caminho em Portugal a percorrer no reconhecimento dos game designers como profissão e necessidade de formação especializada, quer seja no digital ou analógico. Nem todas as escolas e universidades com ofertas formativas na área dos jogos apostam na área da concepção e design dos jogos como disciplinas próprias. Nem nos cursos de videojogos, que crescem de ano para ano, o panorama é diferente. Há um foco nas dimensões técnicas da programação, ilustrações, animações, cinemáticas e outras, dissipando-se a essência própria do processo de construir um jogo e das restantes disciplinas humanísticas de apoio, tais como a psicologia e sociologia aplicável aos jogos. Formam-se profissionais prontos a entrar nas linhas de produção para funções específicas, mas quem queira criar e inovar terá de fazer o seu próprio processo.

Sou game designer profissional, mas o meu percurso é diferente do habitual pois deu-se pela via académica e dos jogos aplicados. Tal como tantos outros game designers, tive de fazer o meu percurso com pouco apoio institucional e formativo. Trabalho quase exclusivamente para o estrangeiro, mais concretamente para os EUA, onde desenvolvo serious games: jogo aplicados para outros objectivos para além do entretenimento. No fundo, jogos desenvolvidos como ferramentas de trabalho para a área do ensino, treino, simulação e apoio a processos de tomada de decisão. Se na criação de jogos de entretenimento ainda temos muito que evoluir, muito mais há por fazer nos jogos aplicados (gamificação, serious games, etc.). O mercado nesta área cresce e as instituições não estão a dar a devida resposta.

Por isso, quando recebi o convite da editora Creative Toys Portugal, que trabalha principalmente com o mercado de massas, para criar o Game Creator Set fiquei surpreendido. Especialmente porque costumo criticar o design de jogos de massas como o Monopólio, das suas fragilidade e desactualização face aos designs mais modernos que estão a revolucionar a indústria um pouco por todo o mundo. Queriam desenvolver um jogo em que os jogadores criassem os seus próprios jogos de tabuleiro, num produto familiar a tender para a actividade criativa.

Foi um desafio que me fez repensar na abordagem aos jogos de tabuleiro, pois era um tipo de produto bem diferente do habitual. Já existiam vários kits de game design, cheios de componentes brancos para os jogadores preencherem, apagarem e reutilizarem. No entanto, foi a interacção com os meus alunos e formandos que me ajudou a encontrar uma solução. Pessoas sem experiência e uma sólida cultura lúdica, especialmente nos jogos de tabuleiro mais modernos, dificilmente conseguem criar algo do zero, ainda menos algo que seja minimamente inovador. Então tive a ideia de transformar esse futuro jogo num processo apoiado por vários jogos, vários níveis e jogos associados, partindo de padrões de jogos mais conhecidos e tendendo gradualmente para os designs mais modernos.

Os utilizadores podiam jogar os vários níveis, sentir a complexidade crescente à medida que adicionavam novas mecânicas que geravam novas experiências de jogo. Assim, exemplificam-se as causas e efeitos das opções de design, etapa a etapa. Estes vários níveis, depois de assimilados, ramificaram em dois jogos muito diferentes, incluído uma abordagem mais narrativa. O primeiro um jogo de estratégia ao estilo do Eurogames e o segundo uma aventura colaborativa de disparo de dados, mais ao estilo Americano e Dungeon Crawler. Independentemente do processo proposto, os jogadores podem partir directamente para a criação do jogo que quiserem desenvolver, usando os componentes disponíveis.

Todos este níveis e jogos diferentes foram desenvolvidos ao longo de um ano, o que incluiu a preocupação em tornar todos os materiais e componentes do jogo em algo reconfigurável. Até a caixa pode ser configurada, e dentro dela estão os materiais necessários para isso, incluindo canetas, um escantilhão, tabuleiro e cartas predefinidas e brancas. Um dos desafios foi equilibrar a variedade dos materiais para criar jogos e o preço final do produto. Queríamos que fosse acessível, mas expansível se as pessoas desejassem mais.

Conceber e desenvolver este Game Creator Set foi um dos projectos que mais gostei de fazer. É emocionante ver o jogo nas prateleiras, disponível no mercado português e constatar nas sessões de demonstração que os utilizadores estão a entrar no mundo do design dos jogos de tabuleiro modernos, incluindo crianças e famílias. Queríamos fazer algo que pudesse potenciar a criatividade e a expressão de todos. Descobrimos que os gamers também se deixam cativar por esta caixa e até alguns aspirantes a game designers já utilizaram o Game Creator Set para desbloquear alguns dos seus projectos. Pode ser um pequeno contributo, mas espero que seja uma ajuda para alavancar criatividade e o potencial transformador dos jogos, independentemente da plataforma, pois sabemos que os jogos analógicos estão intimamente ligados aos digitais e todos eles podem ajudar a mudar o mundo.

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