E eu que só queria fazer um bolo de anos para o meu neto!…

É evidente que as famílias têm toda a legitimidade para educarem os seus filhos de acordo com as suas crenças, valores e opções. O que já não me parece legítimo é que pretendam impor aqueles à escola.

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Cheia de boas intenções, ofereci-me para fazer um bolo de anos para o meu neto levar para a escola. Sabendo que, hoje em dia, existe uma preocupação com a alimentação saudável, escolhi criteriosamente os ingredientes, julgando que estava a corresponder aos requisitos necessários.

Eis senão quando, na véspera do dia de anos, fui informada da listagem de ingredientes que o bolo não poderia conter. Perante tamanha quantidade de interdições, formulei uma simples questão de ordem prática: então, o que é que o bolo pode ter? Na brincadeira, responderam-me que poderia ser feito com água; a sério, não me deram resposta nenhuma.

Não dispondo, de um dia para o outro, do tempo necessário para aprofundar a complexa questão dos ingredientes que o bolo poderia ter, optei por confecionar um para cantarmos os parabéns em casa, utilizando os ingredientes que, até à data, eu — que também tenho preocupações com a qualidade da alimentação — pensava serem saudáveis.

Entretanto, resta-me a consolação de dispor de um ano, até ao próximo aniversário, para averiguar quais os exigentes requisitos para fazer um bolo, seguido de um aturado trabalho de pesquisa sobre as receitas possíveis para juntar os mesmos, de forma o conseguir obter uma mistura que, depois de cozer no forno, se assemelhe a um bolo de anos.

Esta complexa tarefa de fazer um bolo para a escola levou-me a revisitar o não menos complicado desafio que consiste em fazer um bolo na escola. Até há não muito tempo, esta era uma prática habitual, realizada com o objetivo de trabalhar o texto instrucional, aprender as medidas de massa, promover a cooperação entre os alunos e, claro, saborear o dito bolo.

O problema é que, com a quantidade de opções e restrições alimentares existentes nos dias que correm, acompanhadas por um número expressivo de intolerâncias alimentares, a aparentemente simples atividade de se fazer um bolo transformou-se num imbricado quebra-cabeças, que implica procurar múltiplas soluções, para as quais são necessários os mais díspares ingredientes.

A consequência é que, em vez de se fazer um bolo, têm de se confecionar bolos e bolinhos, cada qual elaborado de sua forma e feitio, para corresponder a todos estes requisitos. Como resultado, aquilo que seria suposto ser uma atividade leve e saborosa, agradável e rica em ensinamentos, acaba por se transformar numa autêntica canseira. E, antes da vez seguinte, é legítimo que um professor pense duas vezes antes de se meter noutra…

Esta descrição da diversidade dos regimes alimentares e das restrições à ingestão de determinados alimentos estende-se a muitas outras vivências que, também elas, se tornaram complexas de resolver em meio escolar, relacionadas com a tipologia das famílias, as nacionalidades, as crenças religiosas, as tradições ou até as opções políticas.

Sim, eu sei que a realidade atualmente é complexa e que temos de revelar particular sensibilidade para acolher a diferença. E faço questão de esclarecer que defendo o respeito pela diversidade de opções alimentares, constituição de agregados familiares, crenças religiosas, tradições ancestrais e opções políticas, desde que esse respeito seja pautado pela tolerância mútua. Mas também tenho de exprimir a minha perplexidade quando os direitos das minorias se sobrepõem aos das maiorias ou, quando para evitar tamanha complexidade, se opta pela decisão mais radical: pura e simplesmente, acaba-se com tudo.

A título de exemplo, numa escola onde lecionei, como havia crianças cujas famílias não comemoravam o Natal, foi decidido, liminarmente, que esta data iria deixar de ser vivenciada com as tradições que lhe estavam associadas. Ainda sugeri que, em vez de serem banidas, fossem integradas e valorizadas as tradições das famílias de todos os alunos, mas a minha proposta não teve qualquer eco. Acabou-se com as tradições do Natal e pronto.

Também já passei por situações em que famílias com filhos adotivos pretendiam recomendar a linguagem autorizada para abordar o sistema reprodutor para não melindrar a criança em questão; outras em que recomendavam à escola que explicasse a origem da vida de acordo com a sua visão religiosa; e outras ainda que procuravam impor a sua visão política relativamente ao tema do 25 de Abril. E, como se não bastasse, como cada família tinha a sua visão sobre estes assuntos, os pais dos alunos desentenderam-se entre si e cada qual procurou influenciar a ação do professor de acordo com o seu ponto de vista.

É evidente que as famílias têm toda a legitimidade para educarem os seus filhos de acordo com as suas crenças, valores e opções. O que já não me parece legítimo é que pretendam impor aqueles à escola, condicionando a ação do professor e até procurando interferir na lecionação dos conteúdos contemplados nos currículos escolares.

Mas — com todo o respeito pela diversidade de crenças, de hábitos, de nacionalidades, de tipologias familiares e afins — pergunto-me se, com tantas recomendações, sugestões, interdições e complicações, não estaremos a exagerar, a ponto de nos arriscarmos a perder a naturalidade e a espontaneidade que também são tão significativas na tarefa de educar.

Além de constituírem uma interferência no trabalho do professor, todas estas questões concorrem para complexificar a vida nas escolas. Parece que tudo se tornou complicado, o que obriga os professores a ocuparem um tempo que poderia ser dedicado aos seus alunos a dirimirem problemas com e entre os pais, que ultrapassam, em larga medida, a esfera de competências da escola, desviando-a da sua verdadeira vocação.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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