Anora: a cena final deu-lhe a Palma de Ouro

Anora é a oitava longa-metragem de Sean Baker e deu ao realizador norte-americano a primeira Palma de Ouro no Festival de Cannes.

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Com um enredo Pretty Womanesco efervescido, e uma forma a lembrar os filmes dos irmãos Safdie, Anora mostra o caso de uma dançarina erótica em Nova Iorque com o filho de um bilionário — e presumível oligarca russo, eventualmente consumado num matrimónio rejeitado pela família do último, cujos meios e “funcionários” (os seus goons, vulgo “macacos”) serão alocados para tratar o seu anulamento/divórcio.

Sean Baker já nos acostumou nos seus filmes a tratar as figuras invisíveis e marginais, e este filme não foge à regra. Contudo, Anora materializa-se com recurso a um elenco maioritariamente profissional, não se socorrendo tanto ao uso dos ditos não-actores, numa transição que já se faz sentir na obra do realizador à medida que esta foi evoluindo para um registo mais “narrativo”, à falta de melhor termo, e menos próximo do real-documental.

Ainda assim, Baker procura sempre o “novo” no trabalho de actor (nitidamente uma das suas preocupações maiores, não fosse o próprio ser o responsável pelo casting em Anora), e por se pedir Muito (com “M” capital) ao elenco deste filme, a escolha mais profissionalizada foi a acertada, correspondida num lote encabeçado pela surpreendente Mikey Madison na pele da titular Ani (Anora), e com outros destaques em Yuriy Borisov, como Igor, ou Karren Karagulian, colaborador fetiche de Baker, como Toros.

Eu e o meu amigo António, companheiro das matinés de fim-de-semana, frequentemente pomos os filmes que vemos à lupa do Teste de Griffin, por nós assim apelidado pela apropriação de uma tirada de Peter Griffin, da série de animação Family Guy, ao explicar o porquê de não gostar assim tanto de O Padrinho: “It insists upon itself.” Numa primeira leitura, à flor dos acontecimentos em tela, Anora quase que chumba no teste, no alongar de algumas cenas que, apesar de cómicas (o filme tem um grande sentido de humor) e entertaining, iteram sobre o enredo e tema do filme com alguma redundância. O decorrer da história é algo linear e previsível, colateralidade de uma forma de storytelling bastante honesta, e que não se quer dar à subversão pela subversão.

Essa palavra é chave na forma de pensar o cinema hoje em dia, para mal de muitos. Retomando os Safdie, cujo pacing dos seus filmes é por muitos evocado ao tratar Anora, eles não são inocentes nesta forma de satisfazer os públicos com um momento “what the fuck”. Por vezes resulta, como no final de Uncut Gems, em que o desfecho é, apesar de súbito, moralmente anunciado, pela máxima canónica do cinema de gangster hollywoodesco. Outras vezes, falha glamorosamente, destruindo toda a construção prévia que antecede o dito momento, servindo de exemplo Good Times.

No que à história concerne, Baker não quer subverter. Não está de todo interessado. Quer sim contar a verdade emocional de uma personagem. E assim chegamos à cena final, de que invariavelmente terei que falar (prometo que sem spoilers). Não me tomem por um hiperbolista, mas é esta a cena que dá a Anora a Palma de Ouro. São raras as execuções de um final que verdadeiramente atribui um novo sentido a tudo o que veio para trás. A já mencionada redundância deixa de a ser, denotando-se que tudo o que se construiu não foi senão uma tela, à qual Baker dará cor com um único golpe, socorrendo-se ao décor, à escala dos enquadramentos, e à intensidade de Madison e Borisov. É aqui que Baker ultima a sua busca por esta verdade, refazendo e reperspectivando o seu filme nas nossas cabeças, as do público, enquanto nos confrontamos com os caracteres brancos sobre o preto. E sabemos que falamos de bom filmmaking quando os filmes vivem nas nossas cabeças, porque na tela não há exagero, só dois rostos em contra-campo, e um plano médio.

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