Há cérebros livres de uma voz constante a narrar tudo?

O “normal” é falarmos connosco próprios, e esse diálogo pode acontecer sob a forma de imagens, se fores do tipo visualizador, ou de palavras (com variantes), mas é possível não ter consciência dele.

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"Como é que nos ouvimos dentro da cabeça sem dizermos alto uma única palavra?" SANDRADESIGN
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Querida Mãe,

Ia numa viagem de carro com o meu marido e ele estava em silêncio. Perguntei-lhe em que é que estava a pensar e sabe o que respondeu? "Em nada de especial. Estava só a fazer contas de cabeça com os números das matrículas dos carros."

Mãe!!! Acredita nisto?! Há gente que anda aí pelo mundo sem estar permanentemente a discutir consigo mesma os problemas do universo — a refletir sobre o que pensamos sobre a eutanásia, o que faríamos se houvesse um terramoto, o que temos no congelador, se um dos nossos filhos está apaixonado, se a professora ficou a pensar que éramos negligentes e, em última instância, em que é que o nosso marido está a pensar! Isto é possível? Há cérebros livres de uma voz constante a narrar tudo? É que se há quero encomendar um desses. Para agora!

Há quem diga que é a diferença entre homens e mulheres, mas não é verdade porque conheço homens iguaizinhos a mim. Há quem diga que é entre um cérebro de quem tem filhos e de quem não tem, mas também não é verdade, que Deus bem sabe que esta minha mente anda acelerada desde que me lembro.

Seja o que for cansa!


Querida Ana,

Lindo! A fazer contas com os números das matrículas! A sério, adoro o teu marido, o meu querido genro! E invejo-o porque encontrou uma forma interessante de ginasticar os neurónios, calando o narrador e adormecendo o grilo falante. Tenho de lhe pedir lições porque o meu cérebro é igual ao teu, e não pára nunca, nem mesmo quando estou a dormir — acordo cansada de tanto debate interno.

Por isso, mal acabei de ler a tua carta fiz uma pesquisa na Internet, escrevendo “Vozes que não se calam dentro da cabeça” e o resultado foi, obviamente, “Doença mental/Esquizofrenia”, mas felizmente há outras explicações mais interessantes e benignas e, até, um nome para aqueles que não articulam os seus pensamentos e emoções sob a forma de monólogo interno.

Sim, Ana, por muito cansativo que seja, o “normal” é falarmos connosco próprios, e esse diálogo pode acontecer sob a forma de imagens, se fores do tipo visualizador, ou de palavras (com variantes), mas é possível não ter consciência dele. O que é preocupante, afinal, é quando não existe, e até tem um nome, “Afantasia” ou “Imaginação Cega” (a dificuldade de imaginar coisas e pessoas quando não estão presentes), e afecta 2,5% da população, conduzindo a uma percepção completamente diferente de si mesmos e do universo.

Face a esses, a enfermeira Claire Bonneau responde à tua perplexidade num artigo na Health Match, em que até parece que leu a tua carta. Passo a citá-la:

“Para aqueles com um monólogo interno, a ideia de que os outros possam não experimentar o mesmo processo de falar sozinhos pode, frequentemente, ser confuso ou até chocante. Se é uma pessoa que experiencia um diálogo interno robusto, vai ser-lhe difícil recordar um tempo em que não tenha sido assim — a investigação mostra que o nosso diálogo interno se desenvolve cedo e cresce à medida que envelhecemos.”

A investigação revela que muitas crianças de 5/ 7 anos usam esta voz interna para processar pensamentos e emoções, mas há investigadores que concluem que o processo acontece já em bebés dos 18 aos 21 meses, auxiliando-os a compreender melhor a linguagem e a fonética que começam a utilizar.

Mas nem todos usamos esta ferramenta da mesma maneira, nem para o mesmo fim e, vais gostar disto, Ana, aparentemente não é só uma questão de traços de personalidade, mas também resultado da educação — quando ensinas um filho a verbalizar os seus pensamentos e a argumentar, estás a criar, simultaneamente, alguém com um diálogo interno mais desenvolvido e exigente. Sim, eu sei, minha querida, já é tarde para voltar atrás, mas deixa lá que quando crescerem e viverem numa casa diferente da tua, vais estar grata por ter contribuído para torná-los adultos mais interessantes, embora suspeite que nunca te vão agradecer.

Desculpa, sei que esta carta já vai longa, mas abriste uma caixa de Pandora e agora sou eu que quero saber tudo sobre esta questão. Por exemplo, como é que nos ouvimos dentro da cabeça sem dizermos alto uma única palavra? Não consigo reproduzir a explicação neurológica, mas é importante dizer-te que, aparentemente, essa voz interna está sempre lá — e é ela que cria a nossa “narrativa de vida”, juntando passado, presente e futuro —, simplesmente deixamos de lhe prestar atenção quando estamos muito envolvidos em tarefas concretas e, mesmo assim, continuamos a escutá-la como se fosse uma música de fundo.

Enfim, pode em certas alturas tornar-se insuportavelmente cansativa, mas temos de agradecer à sua existência a possibilidade de, por exemplo, sermos capazes de ler silenciosamente, de conseguirmos ensaiar na cabeça a melhor forma de abordar um problema ou como defender ou rebater convicções.

O mais importante, no entanto, é que essa voz interna seja compassiva e positiva, capaz de nos apoiar nos momentos mais complicados e de nos ajudar a encontrar soluções e não uma voz castigadora, que só diminui a autoestima, aumentando a ansiedade, ou levando-nos a ruminar em pensamentos negativos, num círculo vicioso de que é preciso saltar fora.

Mas há o risco real de pensarmos demais e de ficarmos fixados nos nossos pensamentos e emoções, desligando-nos da realidade. Nesse caso é urgente pedir ajuda para fazer um “reset”, e até me atrevo a suspeitar que fazer contas com os números das matrículas é uma forma de proporcionar esse recreio a um cérebro demasiado ativo e preocupado. Temos muito a aprender com o teu marido!


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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