Jovens cientistas recebem Prémio Maria de Sousa para investigações em saúde
Galardão é atribuído pela Ordem dos Médicos e pela Fundação Bial. A cerimónia de entrega dos prémios decorrerá esta quarta-feira, pelas 17h, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa.
Células estaminais, acidente vascular cerebral, envelhecimento, doença respiratória fúngica e doença inflamatória intestinal: são estas as áreas de investigação dos cinco jovens cientistas portugueses distinguidos, nesta quarta-feira, com o Prémio Maria de Sousa de 2024. Na quarta edição deste prémio, Maria Arez, Pedro Nascimento Alves, Ana Rita Araújo, Samuel Gonçalves e Joana Gaifem vão receber até 30 mil euros cada para os seus projectos, totalizando cerca de 150 mil euros, e terão a oportunidade de fazer um estágio num centro internacional de excelência.
O Prémio Maria de Sousa é um galardão atribuído pela Ordem dos Médicos e pela Fundação Bial, criado em homenagem à imunologista e investigadora Maria de Sousa (1939-2020), que pretende distinguir e apoiar jovens investigadores portugueses, com idade igual ou inferior a 35 anos, em projectos na área das ciências da saúde. Os trabalhos vencedores foram eleitos por um júri presidido pelo neurocientista Rui Costa, presidente e director executivo do Instituto Allen, nos Estados Unidos.
A cerimónia de entrega dos prémios decorrerá esta quarta-feira, pelas 17h, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, precedendo a Conferência “Sobre a fisiologia da mente 2024”, preparada pelos neurocientistas António Damásio e Hanna Damásio, realizada no âmbito da celebração dos 30 anos da Fundação Bial. Na cerimónia estará presente o primeiro-ministro, Luís Montenegro, bem como o ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, o bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, e o presidente da Fundação Bial, Luís Portela.
Eis os cinco investigadores premiados.
Garantir a integridade das células estaminais
Maria Arez, de 29 anos, investigadora do Instituto de Bioengenharia e Biociências do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa, pretende compreender as causas dos erros que ocorrem durante a criação de células estaminais pluripotentes induzidas (iPSC, na sigla em inglês), células criadas em laboratório através da remoção de células maduras de um indivíduo – como células da pele ou do sangue – e que depois são reprogramadas para se comportarem como células estaminais embrionárias (a partir daí, têm a capacidade para se transformarem em qualquer célula do organismo).
Durante o processo de criação destas células em laboratório, podem ocorrer “erros” no controlo da expressão de certos genes, especialmente nas áreas do genoma reguladas por um mecanismo chamado imprinting genómico – e esses erros estão associados a doenças do desenvolvimento e a cancros.
O objectivo final de Maria Arez é, portanto, desenvolver um método inovador para evitar esses defeitos e garantir a integridade destas células, melhorando a segurança e eficácia das iPSC em contextos científicos e clínicos. A investigadora pretende, portanto, fortalecer o papel destas células estaminais nas terapias celulares personalizadas e na medicina regenerativa e oferecer novas possibilidades de tratamento para diversas doenças, tais como doenças cardiovasculares, diabetes, cegueira e doenças neurodegenerativas.
Ao longo do seu doutoramento, Maria Arez tem investigado a causa e o momento em que ocorrem os erros de imprinting, inicialmente em células de ratinho e, posteriormente, em células humanas. “Paralelamente explorei também diferentes estratégias para prevenir e corrigir estes erros. Nos estudos que fiz em células de ratinho consegui corrigir estes defeitos, tendo conseguido obter células estaminais livres de anomalias de imprinting. No entanto, em células humanas, as mesmas tentativas não mostraram evitar ou corrigir estes erros”, explica ao PÚBLICO.
Por isso, neste projecto, a cientista propõe usar tecnologias avançadas como a edição genética por CRISPR, em combinação com métodos alternativos de reprogramação, para produzir células estaminais humanas livres de defeitos de imprinting.
Maria Arez diz-se “extremamente feliz e motivada” com o reconhecimento do “esforço e dedicação” que tem perante a ciência, mas também com a oportunidade de dar continuidade ao seu trabalho e, eventualmente, de estabelecer a sua própria linha de investigação. E mostra-se entusiasmada com o estágio que irá realizar no Centro de Epigenética e Destino Celular da Universidade de Paris (França) em colaboração com Claire Rougeulle, “uma investigadora muito reconhecida na área da epigenética e células estaminais”.
Melhorar as sequelas de um AVC
O projecto de Pedro Alves, de 35 anos, investigador do Centro de Estudos Egas Moniz da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, centra-se no estudo do acidente vascular cerebral (AVC), uma doença muito frequente causada por um défice de sangue ou hemorragia numa determinada região do cérebro e uma das principais causas de alterações cognitivas.
Milhares de milhões de neurónios constituem o cérebro, comunicando entre si através de substâncias químicas chamadas neurotransmissores e formando, assim, circuitos electroquímicos. A lesão do AVC interrompe os circuitos neuronais mediados pelos neurotransmissores, provocando defeitos cognitivos, tais como alterações da fala, memória e concentração.
Pedro Alves explica que, “actualmente, não existe nenhum tratamento medicamentoso que melhore a recuperação destas alterações”. E acrescenta que, recentemente, foi desenvolvida uma técnica de ressonância magnética cerebral que permite inferir quais os circuitos de neurotransmissores que são lesados pelo AVC.
O seu projecto de investigação vai, portanto, testar se “a utilização de medicamentos que poderão restabelecer parcialmente a actividade destes circuitos melhora a recuperação neurológica dos doentes”. “Trata-se de uma abordagem personalizada, de acordo com o perfil neuroquímico de cada doente”, diz o cientista. Inicialmente, o projecto irá incluir um ensaio clínico de fase 2 com cerca de cem doentes para testar esta hipótese. “Se os resultados de eficácia e segurança forem positivos, o próximo passo será realizar um ensaio clínico de fase 3, que inclua um maior número de doentes e outros centros de investigação.”
Se se revelar eficaz, esta abordagem “terá um impacto importante, dado que mais de 25 milhões de pessoas no mundo já sofreram um AVC e uma grande percentagem fica com sequelas cognitivas limitativas”, conclui Pedro Alves, que vai realizar um estágio no Instituto Donders para o Cérebro, Cognição e Comportamento, nos Países Baixos.
Compreender o envelhecimento
Ana Rita Araújo, de 35 anos, investigadora do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto, pretende perceber se as células que proliferam durante mais tempo ao longo da nossa vida têm um papel protector na manutenção da função dos diferentes tecidos e ajudam à desaceleração do envelhecimento.
Até ao momento, diz a investigadora, “conhece-se muito pouco sobre a regulação – ou falta dela – da divisão celular durante o processo de envelhecimento”. Sabe-se que ao longo da nossa vida as células começam a dividir-se cada vez mais lentamente até ao ponto em que param e entram em processo de senescência – uma fase que está intimamente ligada ao desenvolvimento de um processo inflamatório exacerbado que influencia a longevidade dos indivíduos e o aparecimento de doenças ligadas ao envelhecimento, como doenças cardiovasculares, neurodegenerativas e inflamatórias.
Recentemente, o grupo de investigação de Ana Rita Araújo descobriu que existe um mecanismo de regulação do ciclo celular que é responsável pela manutenção da capacidade proliferativa das células. Agora, a cientista vai tentar perceber se a melhoria da proliferação das células envelhecidas é essencial para a preservação da função dos tecidos e órgãos.
Para isso, serão usados modelos in vitro, mais especificamente células de indivíduos com diferentes idades, e modelos in vivo que consistem em ratinhos de diferentes idades – investigando, por exemplo, se a sustentação deste mecanismo in vivo em tecidos mais proliferativos como o intestino e o baço os mantém “jovens” durante mais tempo em contraste com tecidos menos proliferativos como o cérebro ou o coração. No projecto, serão ainda usados “super-ratinhos” que têm uma molécula que os investigadores já sabem que prolonga a longevidade destes animais porque promove a divisão celular controlada e regulada.
Ana Rita Araújo irá realizar um estágio no Instituto Europeu de Investigação para a Biologia do Envelhecimento, nos Países Baixos, onde vai definir “assinaturas moleculares para perceber se as funções dos diferentes órgãos que se vão perdendo com a idade são recuperadas nos super-ratinhos”.
Em última instância, diz a cientista, “isto poderá levar à descoberta de biomarcadores de envelhecimento ou estadio de envelhecimento que poderão ser implementados na clínica para monitorização do estado funcional dos diferentes órgãos com o objectivo de prevenir o aparecimento de doenças crónicas.”
A investigadora salienta que “o envelhecimento da população mundial está a exercer uma pressão significativa sobre os sistemas de saúde, à medida que as comorbidades relacionadas com as doenças crónicas se tornam mais prevalentes com a idade”. “Assim, é crucial compreender o envelhecimento a nível molecular, celular e fisiológico para desenvolver estratégias [nomeadamente farmacológicas] que prolonguem o tempo de vida saudável.”
Como se desenvolve a doença respiratória fúngica
Samuel Gonçalves, de 30 anos, investigador do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS) da Escola de Medicina da Universidade do Minho, vai estudar o Aspergillus fumigatus, um fungo ambiental que está presente em todo lado – incluindo dentro das nossas casas, razão pela qual inalamos centenas dos seus esporos diariamente. Na maioria dos indivíduos saudáveis, este fungo não causa doença. Porém, em algumas pessoas, sobretudo nas que apresentam um sistema imunitário comprometido, por exemplo, devido a um transplante ou a um tumor (ou até a infecções como a covid-19), este fungo pode causar uma doença respiratória fatal chamada aspergilose pulmonar invasiva (API).
Apesar de, nos últimos anos, terem sido feitos alguns avanços significativos no combate a esta infecção, o seu diagnóstico e tratamento continua a ser um problema clínico sério, resultando em elevadas taxas de mortalidade.
“Sabemos que as células do sistema imunitário activam vias metabólicas específicas em resposta a esta infecção. Recentemente, descobrimos que uma das vias que é activada é a via de síntese do colesterol. O objectivo principal deste projecto é perceber qual o contributo do metabolismo do colesterol para as respostas imunitárias antifúngicas, mais concretamente, para o desenvolvimento desta infecção oportunista”, explica Samuel Gonçalves.
O investigador salienta ainda que, “até à data, a informação que a comunidade científica tem de como o metabolismo celular, nomeadamente, o metabolismo lipídico, pode contribuir para a susceptibilidade a infecções fúngicas é escassa”. “Neste sentido, este projecto vem acrescentar informação sobre um novo elemento da patologia da aspergilose pulmonar invasiva que pode ser transversal a outras infecções fúngicas.”
Por outras palavras, o trabalho de Samuel Gonçalves – que vai realizar um estágio no Centro Médico de Doenças Infecciosas da Universidade de Radboud, nos Países Baixos – poderá possibilitar encontrar novos alvos terapêuticos e desenvolver novas estratégias de medicina personalizada que permitam reduzir as elevadas taxas de mortalidade e melhorar a qualidade de vida dos indivíduos susceptíveis a esta infecção.
A aplicabilidade das descobertas ao contexto real é “sempre” o objectivo final, conclui o cientista. “Queremos ser capazes de fornecer as ferramentas necessárias para que os profissionais de saúde possam prever o desenvolvimento da infecção e agir o mais rapidamente possível do ponto de vista terapêutico.”
Prevenir a doença inflamatória intestinal
Contribuir para o desenvolvimento de novas estratégias de prevenção da doença inflamatória intestinal (DII) é o objectivo de Joana Gaifem, de 35 anos, investigadora do i3S. A DII, que inclui a doença de Crohn e a colite ulcerosa, é diagnosticada sobretudo em jovens adultos e não apresenta actualmente um tratamento eficaz para todos os doentes. Além disso, é uma doença multifactorial, pelo que é ainda mais difícil prever quem vai desenvolver a doença, e como prevenir ou tratar a mesma.
No seu projecto, Joana Gaifem vai estudar amostras de doentes com DII e indivíduos saudáveis, assim como modelos experimentais de ratinho, o que permitirá compreender a dinâmica entre a microbiota intestinal (os microorganismos como bactérias e fungos que vivem no intestino) e o hospedeiro, com os glicanos (açúcares complexos que se encontram à superfície das células, neste caso do intestino) como elemento-chave nesta interacção.
A investigadora – que vai realizar um estágio no Instituto de Microbiologia e Infecção da Universidade de Birmingham, no Reino Unido – pretende, portanto, explorar se o perfil de glicanos presentes na mucosa intestinal do hospedeiro é capaz de definir a composição da microbiota intestinal, e de que forma é que esta interacção pode ditar um intestino saudável ou um ambiente inflamatório (doença). Em última instância, o objectivo será contribuir para o desenvolvimento de novas terapias e estratégias preventivas para a DII.
“Ao compreendermos o conjunto de microorganismos que são mais prevalentes no intestino no contexto da doença e de que forma é que estes estão capacitados para usar os açúcares que estão à superfície das células como fonte de energia, pretendemos propor o desenvolvimento de uma dieta baseada em glicanos que possa prevenir o desenvolvimento da doença ou promover a remissão – quando esta se encontra já presente –, através da regulação da composição da microbiota intestinal”, explica Joana Gaifem, acrescentando que o projecto deverá arrancar no início de 2025.