Intermezzo, de Sally Rooney: a comédia da perdição humana

Os leitores da autora de Pessoas Normais podem ficar descansados: este é um romance intocável para quem gosta do método, aqui aperfeiçoado. Mas Intermezzo tem mais ambições.

Foto
Intermezzo é o quarto romance da irlandesa Sally Rooney Kalpesh Lathigra
Ouça este artigo
00:00
06:01

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Sally Rooney (n. 1991) raramente aparece, as poucas entrevistas que dá são a meios estratégicos. Nos quatro romances publicados até agora, criou uma espécie de aura na qual surge como alguém bastante privado cuja preocupação, ou ambição, é fazer ler/vender os seus romances no que poderia ser um teste arriscado: o de provar que não é necessário fazer digressões literárias sempre que há um livro novo. A estratégia tem resultado ou, pelo menos, não impediu que em sete anos fosse um dos nomes mais mediáticos na cena internacional.

O seu segundo romance, Pessoas Normais (Relógio d'Água, 2019) — adaptado a série de televisão em 2020 pela Hulu —, vendeu um milhão de exemplares apenas no Reino Unido. E Intermezzo, o quarto livro, acabado de sair, teve uma recepção mundial em muito comparável às sagas de Harry Potter. Acresce ainda o facto de atrair não apenas a atenção dos leitores como da chamada crítica séria; uma crítica que se divide apaixonadamente entre fãs do modo como explora relações amorosas ou de amizade, e os (quase) delatores de um estilo que consideram demasiado simplista e sentimental.

“Tento manter-me longe das reacções ao meu trabalho”, disse recentemente numa entrevista ao New York Times a propósito deste Intermezzo. Acredita que isso poderia desviá-la do seu caminho enquanto autora, prefere que a conversa seja feita entre leitor e livro. Eis Sally Rooney, 33 anos, gestora ambiciosa de temas universais: sexo, classe, política, filosofia, moral, estética, quase sempre aplicados a vínculos marcados por grande fragilidade. Sejam familiares, laborais, românticos, pondo em diálogo gerações distintas no intuito de evidenciar conflitos ou até mostrar continuidades. E quase sempre recorrendo ao humor. Chamam-lhe a voz de uma geração e, como salientou ao New York Times, esse estatuto torna-a um alvo preferencial de escrutínio.

Intermezzo (com tradução cuidada de Marta Mendonça) teve lançamento mundial a 24 de Setembro e basta cruzar as críticas que já saíram um pouco por todo o lado para perceber não apenas a dimensão do fenómeno. As figuras centrais do livro são dois homens, uma novidade em relação aos livros anteriores de Rooney. São irmãos. Divide-os a idade, a formação, a visão de mundo. Une-os o luto: perderam o pai que morreu vítima de um cancro. Eles são antagonistas.

Peter, um advogado de barra, de 32 anos, o “género de pessoa que leva a vida de uma maneira muito superficial”, campeão de debates; “fala muito ao telemóvel e come em restaurantes e diz que as escolas de filosofia foram refutadas. Ivan, 22 anos, “génio do xadrez”, recém-formado em Matemática, “aparelho nos dentes”, um “desconforto supremo” que lhe ficou da adolescência e “um certo à-vontade na sua indiferença absoluta pelo mundo material”. É “inteligência e beleza”, disse-lhe uma tia. É analista de dados em regime de freelance. Peter vive entre uma ex-relação amorosa com Sylvia, interrompida drasticamente quando ela teve um acidente de carro que a condenou a dor crónica, e a paixão — no início intermitente e quase vazia — por Naomi, 24 anos, universitária, quase sem-abrigo, a sustentar-se graças a expedientes desafiadores das normas aceites socialmente. Ivan, tímido, “esquisitoide”, conhece Margaret, 34 anos, directora de um centro cultural numa cidade de meio rural, e envolve-se com ela.

Este é o quinteto a interpretar o intermezzo, um tempo difícil de descrever marcado pela perda, o luto. Essa pausa forçada é reveladora da ambiguidade em que Rooney gosta de se mover, expondo a vida como uma rede, tal como a vê Margaret, de onde se vão extraindo sentidos a partir das posições que nela ocupa cada pessoa.

Como nas obras anteriores, a ênfase está nas tensões emocionais. Desde a estreia com Conversas entre Amigos (2017), passando pelo sucesso global de Pessoas Normais e a introspecção de Mundo Belo, Onde Estás (2021), a autora irlandesa vem construindo uma cartografia emocional para aquilo a que se pode chamar dilemas contemporâneos. Também aqui as personagens vivem na encruzilhada entre o ideal romântico e a realidade crua das interacções humanas. É nesse limiar que Intermezzo se inscreve. Mas o livro ambiciona maior profundidade. Os diálogos são mais afiados e partem de um quase monólogo interior, com cada capítulo a ser narrado a partir da perspectiva ou da consciência de uma personagem. Só Naomi nos é dada de fora.

Estamos, mais uma vez, em território de intimidade. Rooney trata de sublinhar mais o fosso entre idealização e desengano e de dar uma maior carga dramática a cada uma das existências. Essa dramaticidade advém, em grande parte, do facto de os intervenientes, com sentido do ridículo, estarem conscientes da sua própria alienação.

Esse espaço interior lida com o público, ora através das dinâmicas sociais no quotidiano de cada personagem ora no modo como vivem o espaço da cidade. O mapa deste território é feito de ruas reais que nos vemos a percorrer, rodados de sons, imagens, cheiros, notas que remetem para outro dos dons de Rooney: transformar livros em filmes.

Há um momento em que uma das personagens fala em “iconografia de uma relação”. Intermezzo será uma iconografia de várias relações, a tal rede, onde tudo se estreita, e a que se pode chamar vida, tal como Rooney aqui a constrói, agradecendo a inspiração e muitas frases a autores como Wittgenstein, Henry James e Joyce. Há um capítulo final onde lhes agradece.

Quais as maiores fraquezas deste Intermezzo? Uma espécie de tagarelice, mesmo interior. Há diálogos redundantes, frases que funcionam como coro que poderiam ser mais espaçadas ou menos evidentes. E ganharia com menos metáforas ou simbolismos sexuais/eróticos. Quase tudo se resolve ou se dramatiza na cama. Além disso, a extensão — mais de 400 páginas — podia ser revista e isso só beneficiaria o drama. Mas nada disto vai custar um único leitor aos milhões de Rooney. A eficácia, ou o método Rooney, não foi nem um pouco beliscado. Antes se aperfeiçoou.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários