Aqui na América
Musk tem razão: um imigrante pode decidir as eleições americanas
Notas made in USA sobre a vida americana. Pedro Guerreiro escreve a partir dos Estados Unidos.
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A teoria é antiga: alguém, seja um partido político, um poder oculto, "os judeus" ou qualquer outro ódio de estimação, anda por aí a importar estrangeiros em massa para substituir política, cultural e demograficamente a população de um determinado país. Não há mesmo nada de novo neste disparate, repetido por anti-semitas francófonos do século XIX e pelos nazis alemães e os supremacistas brancos norte-americanos no século seguinte. Houve foi alguma vergonha, durante umas boas décadas, em dizê-lo em público. Mas já não há. Hoje, na sua formulação actual, a teoria da grande substituição faz o seu caminho no mainstream mediático e político, e soma vítimas em actos de violência xenófoba.
Elon Musk nasceu na África do Sul em 1971. Aos 18 anos, mudou-se para o Canadá e obteve a nacionalidade canadiana através da mãe. Em 1992, veio para os Estados Unidos para estudar na Universidade da Pensilvânia, inscrevendo-se mais tarde num doutoramento em Stanford que não chegou a iniciar. É na Califórnia, por volta de 1995, que Musk e o irmão Kimbal trocam a vida universitária pelo empreendedorismo tecnológico.
Em diversas entrevistas e debates ao longo dos anos, o dito irmão repetiu a rábula de que ele e Elon começaram as suas carreiras nos Estados Unidos como "imigrantes ilegais". No mínimo, estariam "numa zona cinzenta", admite também aquele que é agora o homem mais rico do mundo.
Nem os jornalistas, nem os biógrafos de Musk, conseguiram esclarecer até hoje esta "zona cinzenta" da história. Terão Kimbal e Elon Musk entrado nos EUA com vistos de estudante, que os impediam de trabalhar ou conduzir negócios, e ainda assim começado a montar as suas empresas? Os irmãos de origem sul-africana também recusam fazer luz sobre este período. O que é público é que Elon Musk obteve a cidadania norte-americana em 2002, pelo que se presume que terá regularizado a sua situação legal pelo menos cinco anos antes, de acordo com as leis de naturalização.
Não falássemos de Musk e a história seria relativamente banal. É impossível quantificar todos os estrangeiros que entram diariamente nos EUA com vistos temporários e com propósito limitado – como estudantes, amas, atletas, artistas ou meros turistas – e que acabam por assentar arraiais no país. Uns regularizam a sua situação. Outros, sobretudo os que não têm os recursos financeiros necessários, vivem anos como ilegais.
Mas Musk não é um imigrante qualquer. O proprietário de empresas como a Tesla, a SpaceX ou o antigo Twitter (agora X) é também um dos principais actores políticos do presente ciclo eleitoral.
Este sábado, e depois de um longo namoro, Musk subiu ao palco de um comício de Trump em Butler, localidade da decisiva Pensilvânia onde o candidato republicano sobreviveu a uma tentativa de assassinato, para expressar mais uma vez o seu apoio ao ex-Presidente.
"O Presidente Trump tem de ganhar para preservar a Constituição. Ele tem de ganhar para preservar a democracia na América. (...) Senão, estas serão as últimas eleições. Esta é a minha previsão", declarou o "bilionário".
Musk é frequentemente descrito como um visionário, mas não tem dons de vidente. Em 2014, disse que os humanos chegariam a Marte em 2024. Em Março de 2020, anunciou que a pandemia da covid-19 acabaria no mês seguinte. Tal como prometeu diversos produtos e tecnologias que ainda não chegaram a materializar-se. Ou como prometeu que o antigo Twitter seria politicamente neutro nas suas mãos, tendo-se transformado entretanto num megafone da direita radical.
Mas a previsão apocalíptica de que as presidenciais norte-americanas de Novembro serão as últimas relaciona-se com a teoria da grande substituição, de que Musk é actualmente um dos maiores divulgadores. Há meses que o "bilionário" escreve no X que o Partido Democrata estará a deixar entrar milhões de estrangeiros para vencer estas e as próximas eleições.
A teoria – repita-se – é um disparate. Todas as autoridades eleitorais estaduais e federais têm reiterado que são absolutamente residuais os casos de pessoas, nacionais ou estrangeiras, que conseguem votar indevidamente nas eleições norte-americanas. O caminho que cada imigrante tem de fazer até à autorização de residência permanente, e daí até à naturalização, que lhe concede o direito de voto, é quase sempre mais moroso e sinuoso do que a lei promete.
Uma vez naturalizados, os novos cidadãos americanos tendem a participar menos nos actos eleitorais que os seus concidadãos nascidos nos Estados Unidos. Quando votam, os novos americanos tendem a privilegiar o Partido Democrata, mas não por esmagadora maioria. Tanto é que os republicanos têm crescido com Trump entre o eleitorado hispânico e latino, que está muito longe de ser um bloco política e socialmente uniforme. Por fim, mais de metade de todos os imigrantes nos Estados Unidos vivem na Califórnia, Texas, Nova Iorque e Florida. Destes estados, apenas o último poderá entrar nas contas do desempate no colégio eleitoral em Novembro – ainda assim, é uma possibilidade remota.
Musk mente, portanto, apelando aos piores instintos do candidato republicano e dos apoiantes deste. Mas a xenofobia é também estratégica, tal como é toda a sua recente aproximação a Trump, com quem trocou ataques há não muito tempo – no início deste ciclo eleitoral, Musk disse que o ex-Presidente era "um perdedor" e que já não tinha idade para regressar à Casa Branca, tendo apoiado as candidaturas de Ron DeSantis e de Vivek Ramaswamy; Trump declarou em 2022 que só faltou ao empresário implorar-lhe de joelhos por subsídios para os seus projectos.
Mais que esposar uma visão verdadeiramente proteccionista ou nativista, Musk acompanha outras figuras do sector tecnológico e financeiro que vêem nos democratas um obstáculo ao desenvolvimento dos seus negócios, por via da regulação. Nos últimos anos, Facebook, Google, Apple e Amazon enfrentaram processos antimonopolistas nos EUA; o sector das criptomoedas foi alvo de investigações criminais; e a Casa Branca tem movido esforços para regular a inteligência artificial. A revolta de Silicon Valley deu azo, entre outros movimentos, a um furioso manifesto do influente investidor Marc Andreessen contra a oposição "profundamente imoral" dos reguladores às novas tecnologias que vieram salvar o mundo, e reuniu vários figurões do sector em eventos de angariação de fundos para os republicanos. Entre estes, Musk.
A ironia, claro, está na utilização de argumentos xenófobos por parte de um antigo imigrante, daqueles que viveram "numa zona cinzenta", que utiliza agora o seu imenso poder financeiro e mediático para influenciar uma eleição presidencial. Quantos votos terá valido a Trump a presença de Musk em Butler? E a transformação do Twitter, a antiga praça pública da Internet, num espaço cada vez mais enviesado e manipulado? Certamente mais que um punhado de boletins de voto depositados por uns quantos imigrantes ilegais. Mas, para os apoiantes de Trump, a conspiração menos evidente é a que está à frente deles.