Nós já vivemos isto – sobre o genocídio

As tentativas de negação de genocídio são praticamente tão antigas quanto o surgimento do seu termo.

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A última década do século passado terminou com dois dos acontecimentos mais trágicos da história mundial desde a Segunda Grande Guerra. Em Srebrenica, na Bósnia-Herzegovina, cerca de 8000 homens e rapazes foram sumariamente executados pelas forças sérvias na região no espaço de duas semanas. No Ruanda, no espaço de 100 dias, as estimativas apontam para aproximadamente um milhão de pessoas assassinadas. Em ambos os casos, ficou provada a prática de genocídio e foram criados dois tribunais penais internacionais para julgar os perpetradores de tamanhas atrocidades.

Quer durante o período em que decorreram os acontecimentos, quer após o seu término, não faltaram vozes na cena internacional que procuraram diminuir a gravidade destas ações, que as tentaram justificar ou contextualizar e/ou que negaram a sua ocorrência. A aprovação da Convenção de 1948 sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, que no seu Artigo 8.º determina que qualquer Estado pode solicitar às Nações Unidas que aplique as medidas necessárias para pôr fim às práticas de genocídio, levou a que, do ponto de vista institucional, se tenha tornado fundamental para os Estados disputarem legalmente a ocorrência de um eventual genocídio. Esta linha de ação permite, assim, aos Estados manterem uma posição passiva e não serem compelidos a uma intervenção direta nos acontecimentos.

No entanto, não é só do ponto de vista institucional que a prática de negar ou diminuir a gravidade dos atos de genocídio ocorrem. As tentativas de negação de genocídio são praticamente tão antigas quanto o surgimento do seu termo e, por norma, as razões para a sua negação assentam em três grandes fatores: a gravidade dos acontecimentos torna quase impossível a compreensão real da sua existência, criando uma espécie de dissociação com a realidade; a simpatia pela causa ou pelos agentes perpetradores que estão na origem de tais atos; ou, a desumanização das vítimas – imputando-se-lhes culpa pelo sucedido ou relativizando-se o seu sofrimento.

A dimensão dos movimentos negacionistas do holocausto na Europa atingiu tal dimensão que, sobretudo a partir dos anos 90, vários estados europeus começaram a introduzir nos seus ordenamentos jurídicos a tipificação de negação do holocausto como crime – em alguns casos, sobretudo na Europa de Leste, de genocídio ou de crimes contra a humanidade num senso mais lato. E, mais recentemente, têm-se verificado várias tentativas de criminalizar o negacionismo em toda a União Europeia, sobretudo a partir de iniciativas levadas a cabo pelo Parlamento Europeu.

Mesmo nos casos em que, a posteriori, e por via de tribunais penais internacionais, se determinou sem sombra de dúvidas que se tinham verificado genocídios – Bósnia, Ruanda ou Cambodja – verificaram-se sempre fortes movimentos de negação destes acontecimentos, seja durante ou após as ocorrências. Em todos estes casos, as manobras delatórias, assentes na negação dos factos, permitiram perpetuar a ação dos agentes opressores – nos três casos, o próprio Estado ou outros Estados agressores. E ao permitir a continuação da ação do opressor, seja garantindo a sua impunidade, seja nada fazendo para contrariar a sua capacidade de ação, o que se permitiu foi o aumento exponencial do número total de vítimas. No final, ficaram apenas os atos de contrição e, tal como depois do holocausto, as promessas de que jamais deixaríamos que tais atos se repetissem.

Este artigo é sobre Gaza e sobre o genocídio levado a cabo pelo governo de Israel.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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