Está na hora de “repensar” o uso de água engarrafada pelos efeitos que tem na nossa saúde

Impactos tanto na saúde humana como na do planeta devem levar-nos a repensar o consumo crescente e desnecessário de água engarrafada, dizem cientistas. Um milhão de garrafas são compradas por minuto.

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Estima-se que um milhão de garrafas de plástico são compradas por minuto no planeta LUCY NICHOLSON/REUTERS
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O consumo de água engarrafada tem de ser repensado, uma vez que tem impactos crescentes tanto na saúde humana como na do planeta, alerta um artigo publicado nesta terça-feira na revista científica BMJ Global Health. Estima-se que um milhão de garrafas de plástico são compradas por minuto no planeta, um número que só tende a crescer, de acordo com os autores do artigo.

É vital que as populações e os governos compreendam que a conveniência da água engarrafada em plástico tem um custo elevado tanto para a saúde humana como para a do planeta. A água da torneira em muitos países de rendimento alto e médio-alto é não só mais segura e mais acessível, como também mais sustentável”, afirma ao PÚBLICO o co-autor Amit Abraham, docente no Instituto de Saúde Populacional de Weill Cornell Medicine, no Qatar. ​

O comentário publicado na BMJ Global Health detalha que entre 10% e 78% das amostras de água engarrafada contêm contaminantes, incluindo microplásticos, ftalatos (utilizados para tornar os plásticos mais duráveis) e bisfenol A (BPA). Ainda que existam limiares de segurança a curto prazo, refere o artigo, os efeitos a longo prazo destes contaminantes permanecem em grande parte desconhecidos.

“As condições de armazenamento da água engarrafada aumentam significativamente o risco de os contaminantes do plástico lixiviarem. Armazenamento prolongado e exposição a altas temperaturas ou luz solar podem fazer com que compostos químicos nocivos, como o BPA e os ftalatos, passem para a água”, escrevem os autores.

A contaminação por microplásticos está associada, na saúde humana, ao stress oxidativo, à desregulação do sistema imunitário e a alterações nos níveis de gordura no sangue. Já a exposição ao BPA tem sido relacionada com problemas de saúde como a hipertensão arterial, as doenças cardiovasculares, a diabetes e a obesidade.

Água da torneira é menos segura?

Calcula-se que aproximadamente dois mil milhões de pessoas no mundo tenham acesso limitado, ou inexistente, a água potável segura – e por isso dependem da água engarrafada para sobreviver. À excepção deste grupo, argumentam os autores, aqueles que consomem o produto fazem-no por conforto ou devido à percepção – infundada, asseguram os cientistas – de que a água engarrafada é mais segura do que a da torneira.

Existem muitas ideias erradas sobre a água da torneira. Uma das mais comuns é a de que a água da torneira não é segura para beber devido à presença de determinados produtos químicos ou bactérias; no entanto, é importante notar que a maioria dos países de rendimento elevado e muitos países de rendimento médio seguem normas de segurança rigorosas e estritas para garantir que a água da torneira é segura para beber. Para algumas pessoas, a água da torneira pode estar ainda associada a um sabor ou odor desagradável”, observa o co-autor Amit Abraham.

Os autores, na sua maioria afiliados ao Instituto de Saúde Populacional no Qatar, recordam que a água distribuída pelos sistemas de abastecimento público é frequentemente sujeita a padrões rigorosos de qualidade e segurança. “Ao dar prioridade ao consumo de água da torneira, podemos enfrentar colectivamente os desafios multifacetados colocados pela [água engarrafada] e adoptar a água da torneira como pedra angular da responsabilidade ambiental e da saúde pública”, sugerem.

A água da torneira é também mais ecológica. As garrafas de plástico constituem o segundo resíduo mais comum nos ecossistemas marinhos e representam 11,9% de toda a poluição plástica encontrada no oceano. Estima-se que só 9% das embalagens descartadas adequadamente sejam de facto recicladas, uma vez que a maior parte segue para aterros sanitários ou incineradoras.

A própria produção de embalagens plásticas de uso único é um problema climático. “O processo de extracção de matérias-primas [de origem fóssil] e o fabrico de garrafas plásticas contribui significativamente para a emissão de gases com efeito de estufa, devido ao consumo de recursos não renováveis e de intensa energia”, observam os autores.

Amit Abraham sublinha ainda, numa resposta ao PÚBLICO por escrito, que o tema da água engarrafada também levanta questões relativas à justiça social e ambiental, “uma vez que as comunidades de baixos rendimentos suportam o peso dos resíduos de plástico criados por grupos mais ricos”.

“A transição da água engarrafada de plástico para a água da torneira segura é um passo importante a considerar. Os governos e os organismos reguladores devem repensar as suas políticas para garantir que todos tenham acesso a água potável limpa e segura”, observa Amit Abraham.

Os autores defendem mais investimentos que garantam o acesso universal a água potável segura em países de baixo e médio rendimento. São necessárias ainda políticas públicas que favoreçam a utilização de água potável em restaurantes e espaços públicos e desencorajem a oferta de plásticos de utilização única. Um dos caminhos sugeridos passa, por exemplo, por campanhas de saúde pública.

“As provas acumuladas sublinham o papel fundamental das intervenções governamentais e das campanhas educativas na mudança da percepção e do comportamento do público. Estas campanhas devem realçar a gestão ambiental e os benefícios para a saúde da escolha da água da torneira, conduzindo efectivamente a uma mudança cultural no sentido de práticas de consumo mais sustentáveis”, lê-se no estudo.

Os autores concluem, portanto, que a dependência da água engarrafada acarreta custos significativos na esfera financeira, ambiental e de saúde pública. Nesse sentido, exortam os decisores políticos —​ em particular em países de baixo e médio rendimento, onde existe uma necessidade premente de investir em infra-estruturas de água potável —​ a fazerem “uma reavaliação urgente da utilização generalizada” deste produto.

Um relatório das Nações Unidas, divulgado em 2023, já alertava que a ideia de que “a água engarrafada é mais segura do que a da torneira precisava de ser questionada”. O documento lembrava ainda que a indústria da água engarrafada —​ um dos sectores económicos mais pujantes do planeta, com um crescimento mais rápido do que muitos outros no domínio alimentar — gera 25 milhões de toneladas de resíduos todos os anos.

Um artigo de revisão de 20 anos de estudos sobre microplásticos, publicado há menos de uma semana na revista científica Science, afirmava justamente que o conhecimento científico que temos hoje sobre a matéria oferece provas “mais do que suficientes” para fundamentar uma acção global contra a poluição plástica.

Notícia actualizada dia 25/9/24 às 19h10: foram acrescentadas citações de um co-autor do estudo