O França-Irão de futsal teve match-fixing? E um sorteio acabaria com o problema?

Houve, no Mundial de futsal, um “não-jogo”. Ninguém queria ganhar e resta saber se a FIFA vai penalizar alguém. Entre confiar na boa fé dos jogadores e apostar num sorteio, não há solução óbvia.

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O Mundial de futsal está na berlinda depois do França-Irão João Silva
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O mundo do desporto – e do futsal em particular – está de armas apontadas ao França-Irão, partida do Mundial de futsal cujo 1-4 terá sido facilitado, neste domingo, pelos gauleses, teoricamente interessados em perder. Mas, em rigor, ambas as equipas teriam interesse na derrota – quem perdesse teria um caminho teoricamente mais acessível para a final, evitando duelos com Marrocos, Brasil e Espanha, preferindo equipas como Tailândia, Paraguai e Portugal.

Reforce-se que tudo isto assenta no plano teórico: não é fácil provar que a França queria perder, não é fácil provar que fez de propósito para perder e não é sequer possível prever com certeza que o caminho que os franceses vão ter para a final seja mais fácil do que o caminho que terá o Irão.

Dito isto, é importante perceber que ambas as equipas se prestaram a um jogo ofensivamente inócuo, com apenas oito remates na primeira parte – num jogo de futsal, é um número absurdo de tão baixo.

O problema para o Irão é que o empate deixaria a equipa na primeira posição do grupo, algo que acabou por tornar inevitável que os asiáticos atacassem na segunda parte – não iriam conseguir obrigar a França a atacar, pelo que desistiram de não jogar.

O primeiro golo do Irão tornou-se viral, pela facilidade que defensores e guarda-redes gauleses deram aos adversários (vídeo em baixo). Talvez nem o jogador do Irão acreditasse que ia marcar um golo naquele remate.

Como contrariar isto? A solução mais óbvia é confiar que todos os jogadores e treinadores têm os melhores valores desportivos assimilados e que sabem que o desporto não é apenas uma competição: é entretenimento. Mas esperar isto é esperar demasiado.

Sorteio?

A alternativa à fé nos humanos é regulamentar as competições para que os jogos da fase a eliminar sejam determinados por sorteio. Isso evita que a última jornada da fase de grupos, sobretudo no último grupo a entrar em jogo, possa ser disputada com “arranjinhos”, pactos de não-agressão em empates convenientes a todos e até, como no França-Irão, uma aparente predisposição para a derrota.

Para a fase a eliminar seria feito um sorteio com cabeças-de-série, respeitando o mérito na fase de grupos. No fundo, ninguém saberia qual era o adversário mais conveniente e muito menos o lado do quadro mais acessível no caminho até à final. E nem se coloca o problema do futebol, com selecções e estádios em várias cidades, já que o Mundial de futsal se disputa numa só cidade e num só pavilhão.

Qual é, então, o problema desta solução? O calendário. Sortear as equipas faz com que não seja possível, em teoria, ter em conta as equipas que jogaram há mais tempo e as que terminaram a fase de grupos mais tarde. E isso poderia ter impacto nos dias de descanso a que uns e outros tiveram direito.

Ainda assim, não parece ser um problema inultrapassável. Primeiro, porque colocar mais jogos no mesmo dia permite equilibrar os períodos de descanso. Segundo, porque todas as selecções teriam, neste Mundial, pelo menos dois dias de descanso – mesmo que jogassem no último dia da fase de grupos e no primeiro da fase a eliminar.

Se os treinadores costumam dizer que três dias são suficientes para a recuperação física, bastaria acrescentar um ou dois dias ao período de pausa no Mundial.

No fim de contas, podemos medir o impacto negativo de períodos de descanso discrepantes contra o impacto negativo de equipas que tentam perder um jogo. E não é difícil adivinhar qual deles prejudica mais a modalidade.

É match-fixing?

O dano reputacional para a modalidade não é difícil de medir, já que basta uma viagem pelas redes sociais ou pela imprensa internacional para entender a imagem que este jogo passou do futsal – até dentro da modalidade.

Ricardinho, um dos melhores jogadores da história, foi duro na crítica: “Já tinha acontecido no Mundial do Brasil, entre Paraguai e Itália, onde esteve aos olhos de todos o que aconteceu, para que ambos se apurassem para a fase seguinte. E agora a França faz o mesmo para evitar rivais mais difíceis. Não sei até quando os atletas vão pactuar com estas coisas e quando vão criar um conceito para que na última jornada haja mais coisas assim. O futsal perde, o desporto perde. Que triste”.

Erick Mendonça, jogador da selecção portuguesa, escreveu que “é uma questão de honra” e Paçó lamentou: “E é esta a imagem que queremos passar do futsal…". Países como Líbia e Paraguai vão avançar com queixas à FIFA, sendo que o treinador dos africanos apontou que “é uma vergonha para o nosso desporto”.

Acima de tudo isto, já se fala de match-fixing. Se pegarmos na definição mais básica, é difícil enquadrar nesse conceito, que pressupõe um ganho financeiro para quem perder o jogo e carece de provas claras de documentos, comunicações, etc.

Mas o match-fixing é mais do que isso. Na definição da FIFA entra também como “manipulação de jogos para obter vantagens desportivas (…) como garantir que uma equipa progride numa determinada competição ou para evitar a despromoção”.

“Este tipo de manipulação não está geralmente relacionado com apostas. No entanto, pode ainda assim produzir um benefício financeiro para os envolvidos no cenário de manipulação de jogos”, pode ler-se ainda no site do organismo de futebol – e futsal.

Motivação para a Tailândia

No fundo, não será um caso clássico de benefício financeiro ou de crimes com casas de apostas envolvidas, mas é, ainda assim, manipulação de resultados. A FIFA tem, portanto, matéria para agir.

Mas não deverá ser fácil. O Irão era, em teoria, a equipa mais forte das duas, pelo que o resultado, mesmo que facilitado, não foi surpreendente. Além disso, não deverá ser fácil provar que o guarda-redes francês não quis defender – há já quem argumente que desviou a perna direita para não sofrer o golo por entre as pernas.

A explicação pode ser rebuscada, mas é, em teoria, suficiente para não ser óbvia a mão da FIFA na desqualificação de alguém.

Tudo fica, agora, nas mãos da FIFA, mas também da Tailândia. É que os franceses, mesmo sem essa intenção, terão dado a maior motivação possível à equipa asiática, olhada como “bombo da festa”. E não é difícil prever que o mundo extra-França está a torcer pelos asiáticos.

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