Se é frito não é de Setúbal: o choco do estuário do Sado é assunto para grelhadores

Setúbal é sinónimo de choco frito, mas há 50 anos não era assim. Apesar da loucura que leva a restauração local a importá-lo, o choco mantém uma relação especial com a região — muito além da fritura.

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Choco frito na Casa Lagarto, em Setúbal Tiago Pais
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Pesca do choco à linha no estuário do Sado, junto do Possanco (Alcácer do Sal) Daniel Rocha/Arquivo Público
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Cais palafítico da Mourisca (Setúbal) Tiago Pais
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Sandes de "ovas" de choco fritas, no snack-bar Formiga (Sesimbra) Tiago Pais
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Numa epifania enviada pelos deuses do marketing, Júlio Santiago decidiu mandar escrever nos sacos do seu restaurante “Setúbal, capital do choco frito”. Era o início dos anos 1990 e tinha começado a gerir a Casa Santiago, fundada pelo pai no final dos anos 1970. A frase pegou e a ideia ainda mais. Na Avenida Luísa Todi, no centro de Setúbal, enfileiram-se as portas para receber clientes de todo o país e comer um prato apenas: o choco frito, que recentemente ficou colado à cidade. No estuário do Sado, aqui ao lado, o choco cresce, desova, é pescado e acaba nas grelhas — mas não nas fritadeiras.

Num tempo morto da tarde na doca, há sempre quem mate o tempo pescando. Os sucessivos assoreamentos na zona mudaram um pouco esta apanha desportiva e os robalos e chocos foram para águas mais fundas.

“Há 15 anos, apanhavam-se aqui chocos à mão”, comenta um dos pescadores, junto à Taberna da Macaca, uma das últimas onde se compra a bebida e se leva o petisco de casa ou da pesca. “A malta do mar sempre teve esse conceito. Alugavam o fogareiro à taberna e faziam o petisco. Há 50 anos, nas docas, aquilo era tudo tabernas. O único restaurante era o Rio Azul”, recorda Daniel Ferreira, pescador e presidente da SetúbalPesca — Associação de Pesca Artesanal.

Um dos petiscos de eleição era já o choco frito, mas muito diferente daquele que hoje salta à imaginação ao falar da cidade. Os pescadores recolhiam o choco ratado, como lhe chamam: carcaças do choco que boiavam na água, depois de predadores, como os roazes, lhes terem caçado a cabeça. As sobras da refeição de um golfinho não têm valor comercial e, por isso, cortavam-nas às tiras e fritavam em azeite, sem farinha nem polme, apenas com sal ou alho.

Além de pescador, Daniel Ferreira é presidente da SetúbalPesca - Associação de Pesca Artesanal. Tiago Pais
“Quando puxamos as redes, os salmonetes vêm com dentadas do choco", comenta Daniel Ferreira. "Só come coisa fina.” Tiago Pais
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Além de pescador, Daniel Ferreira é presidente da SetúbalPesca - Associação de Pesca Artesanal. Tiago Pais

Missão de vida: chegar ao Sado

Se nessa época muitos destes pescadores andavam na pesca de cerco — por causa da indústria conserveira, a sardinha sempre foi um dos sustentos da população —, hoje as redes de choco, de linguados, pregados e raia estão em maioria. “Esta semana fechou a última traineira [de cerco]”, diz Daniel com ar pesaroso. À linha ou com as características redes de tresmalho, a pesca do choco arranca com Dezembro. “Os covos [armadilhas semelhantes à dos polvos] também têm apanhado muito. Em tendo uma fêmea, entram os machos todos lá para dentro. É como tudo na vida”, ri-se Daniel Ferreira.

A safra começa pela costa, pelas zonas mais fundas. “Da barra até à costa há três milhas de baixa profundidade e ele percorre isso tudo”, explica Daniel. O destino é a desova dentro do estuário do Sado e a época só termina em Junho, quando se começam a apanhar os chocos mais pequenos, com o mínimo de 10 centímetros.

O estatuto de conservação do choco é Pouco Preocupante (LC) e “não há evidência científica de que haja um impacto da pesca nas populações de choco. Esta pesca tradicional há muito que convive com a época de reprodução e estes pescadores são muito defensores da ecologia, porque dependem destes recursos”, afirma Rita Gamito, da Divisão de Turismo da Câmara Municipal de Setúbal. A bióloga marinha é uma das responsáveis pelo percurso interpretativo “O Choco e o Estuário do Sado”, uma das actividades da Semana do Choco, que a câmara organiza em Abril.

Chamam-lhes "ovas", mas são, na verdade, um órgão interno do choco. Na Casa Lagarto, são servidas fritas. Tiago Pais
Tânia Lopes é peremptória: “Quem disser que usa choco de Setúbal para fritar está a mentir.” Na Casa Lagarto, a apanha local tem como destino a grelha. Para fritar, tem preferência o choco marroquino. Tiago Pais
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Chamam-lhes "ovas", mas são, na verdade, um órgão interno do choco. Na Casa Lagarto, são servidas fritas. Tiago Pais

As falsas ovas de choco

“Há uma relação peculiar do choco com o estuário do Sado. Não é em todos os estuários que ele entra — no Tejo, por exemplo, não há choco”, explica Rita Gamito, elencando algumas razões ainda não completamente estudadas: “A salinidade do nosso estuário é muito semelhante à do mar, a água não é tão renovada. Por outro lado, talvez no Tejo não haja tantas pradarias marinhas.”

Este habitat, pleno de plantas aquáticas, é essencial para o choco cumprir a missão de vida: a fêmea deixa os ovos agarrados a estas ervas marinhas para depois morrer, nunca chegando a ultrapassar o ano e meio de vida. Os ovos são parecidos com um cacho de uvas totalmente preto — em nada semelhante ao órgão interno que se come frito, grelhado ou em saladas e que a chamam “ovas de choco”.

No Formiga, um snack-bar no alto da vila de Sesimbra e com vista para o mar, este órgão é um dos petiscos-estrela, frito e em sandes, com um molho ligeiramente picante, ou levemente cozinhado e temperado numa salada fria. A sua textura folhada e carnuda nada tem que ver com o granulado das ovas de peixe e, nos pratinhos do Formiga, basta-lhe azeite e o avinagrado de uns picles picados.

Não é deste órgão que saem as miniaturas de choco. No estuário do Sado, o choco acabado de eclodir aproveita a riqueza do habitat para se alimentar e crescer. “Quando puxamos as redes, os salmonetes vêm com dentadas do choco. Só come coisa fina”, comenta Daniel Ferreira.

Em Setúbal, multiplicam-se as homenagens ao choco, incluindo sob a forma de estátuas. Tiago Pais
As "ovas" de choco são um dos petiscos-estrela do snack-bar Formiga, em Sesimbra. Quer fritas e em sandes, quer numa salada com azeite e picles picados. Tiago Pais
Júlio Santiago herdou do seu pai, Virgílio, o título oficioso de "Rei do choco frito". Não é para menos: foi este quem inventou o choco frito tal como o conhecemos hoje. Tiago Pais
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Em Setúbal, multiplicam-se as homenagens ao choco, incluindo sob a forma de estátuas. Tiago Pais

Novo e tradicional

Da Herdade da Mourisca, um pequeno porto dentro do estuário com trilhos para a observação de pássaros e um núcleo museológico, ainda saem alguns barcos para a pesca. As melhores zonas são a Gâmbia, não muito longe, ou a Carrasqueira, na margem oposta, de onde vieram os autores do novo choco frito. Virgílio Santiago era pescador quando decidiu mudar de vida e abriu uma taberna no centro de Setúbal, nos anos 1970. Como nas outras, vivia de petiscos, mas quando começou a aparecer gente para almoçar, lembrou-se de fritar o choco como se fritam os espanhóis calamares, com uma capinha de farinha.

“O meu pai era muito bom cozinheiro e, com 81 anos, continua a acompanhar-me”, conta Júlio Santiago, o filho a quem passou o negócio no início dos anos 1990. “Entregou-me a chave e disse-me ‘Tens aqui a tua prisão perpétua’. Só passado de um tempo é que percebi.”

A Casa Santiago teve sucesso suficiente para ficar conhecida como Rei do Choco Frito, para fazer escola e influenciar os restaurantes da avenida. Um irmão abriu o Cais 56, um primo, a Adega do Zé, e o fundador do Leo do Petisco, a outra casa famosa de choco frito em Setúbal, era seu tio. A receita seria muito semelhante, já que Virgílio e Leonel trabalharam lado a lado na Casa Santiago. Dizem os críticos que o choco do Leo (agora com nova gerência) tem mais picante. “O nosso só tem um bocadinho para temperar, estamos a apostar nos futuros clientes”, diz Júlio referindo-se às crianças.

Júlio Santiago viu, desde que a família se estabeleceu aqui, os restaurantes da avenida adoptarem progressivamente esta receita de choco frito por uma razão simples: “Viam que quem tinha fila à porta fazia choco frito.” Como outros, ainda tentou ter peixe grelhado, mas sem sucesso. Além da dose e da sandes de choco frito e das ovas fritas, tem bife de vitela, omelete e nada mais.

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No restaurante O Zagaia, em Sesimbra, os croquetes são de choco picado e tingidos pela tinta de choco. Tiago Pais
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"Sesimbra é muito ligada ao choco e tentamos manter algumas âncoras na tradição com alguma inovação”, sublinha o chef e co-proprietário Paulo Carvalho. Tiago Pais

Choco frito de Setúbal marroquino

Uns números abaixo na mesma avenida, Tânia Lopes também tentou ter pratos do dia — e ainda insiste. Quando o pai comprou a antiga Casa Lagarto, em 2012, percebeu rapidamente que as carnes do seu Ribatejo não teriam saída. Sem família que lhe desse fama ao choco, decidiu testar vários fornecedores até chegar ao choco tenro que dá tiras grandes e gordas: o choco marroquino. “Quem disser que usa choco de Setúbal para fritar está a mentir”, frisa Tânia. “Os chocos têm de ser grandes e a pesca de Setúbal não dá choco em quantidade”, explica.

Júlio Santiago concorda, também no seu restaurante se usa o choco de Marrocos. “Esta cidade deve consumir facilmente umas duas toneladas diárias de choco frito nos dias bons. Só nós vendemos 700 quilos, o Leo do Petisco outros tantos”, estima. Seria impossível cumprir esta procura desenfreada que não olha à sazonalidade nem à escala da pesca tradicional, dizem.

Na Casa Lagarto, Tânia Lopes compra choco de Setúbal apenas para grelhar e vê o preço alto deste produto sadino como um entrave a que se consuma mais nos restaurantes. Os pescadores desportivos que vendem as suas apanhas directamente aos restaurantes são uma forma de escapar aos preços de mercado.

“A partir de Março, o rio tem mais barcos do que água: tiram férias para pescar ou estão reformados. É um negócio paralelo e não faz bem a ninguém: a fiscalização não actua, quando apanham um choco abaixo do tamanho [permitido], pouco caso fazem disso. Como não podem vender na lota, vão vender directamente aos restaurantes”, confirma Daniel Ferreira.

Choco é com tinta

O pescador diz que quem anda ao choco sabe que vai levar com o ferrado. É o nome que dão ao esguicho de tinta que o bicho lança quando se sente ameaçado — e se isto é verdade para quem pesca, também deve ser para quem come. Nos restaurantes dos bairros interiores de Setúbal, os chocos grelhados vão à mesa temperados com cebola e salsa e cheios de tinta, que também dá o seu sabor. Do outro lado da Serra da Arrábida, Paulo Carvalho aproveitou a tinta para dar um efeito cénico aos seus croquetes.

No O Zagaia, em Sesimbra, os croquetes são de choco picado e tingidos pela tinta de choco. O resultado é um forte sabor a mar, intensificado por um caldo de polvo e servido com uma maionese suave de alho negro. O salgadinho tornou-se um ícone da casa e uma boa síntese do que querem fazer. Tratar o choco como a carne de um croquete é uma afirmação desta marisqueira repensada. “Sesimbra é muito ligada ao choco e tentamos manter algumas âncoras na tradição com alguma inovação”, sublinha Paulo Carvalho.

Se a ligação ao choco é muito anterior à febre do frito, vale a pena lembrar que nas casas desta costa o choco se come guisado com ervilhas ou favas — ou não fossem as suas épocas coincidentes. “Eu ainda ontem o cozi. Nem sal levou, porque traz muito sal das ventosas”, explica Daniel Ferreira. O segredo de um pescador cozinheiro é sempre de notar.


Este artigo foi publicado no n.º 7 da revista Solo.

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