Supremo Tribunal dos EUA reduz poderes de regulação de agências federais

Decisão anula a “doutrina Chevron” que dava a primazia de interpretação às agências federais. O tribunal decidiu ainda dificultar acusação por obstrução a arguidos do assalto ao Capitólio.

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O Supremo Tribunal aboliu hoje a "doutrina Chevron", que dava a última palavra de decisão às agências governamentais na sua área de actuação SHAWN THEW / EPA
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O Supremo Tribunal dos Estados Unidos, de maioria conservadora, decidiu esta sexta-feira reduzir a liberdade de acção das agências federais - que têm estado na linha de fogo dos círculos ultraliberais em cruzada contra “a burocracia” - ao anular jurisprudência de 1984.

Essa jurisprudência, conhecida como “doutrina Chevron”, dava às agências governamentais a última palavra nas suas áreas de competência, por exemplo em matéria ambiental, de proteção social ou defesa dos consumidores. Ela impunha aos tribunais federais que seguissem a interpretação “razoável” dessas agências, em caso de ambiguidade ou lacuna da lei.

“Os tribunais devem exercer o seu juízo independente para decidir se uma agência agiu em conformidade com a autoridade que lhe é conferida pela lei e não podem aceitar a interpretação que essa agência faz da lei simplesmente porque esta é ambígua”, escreveu o presidente do Supremo Tribunal, John Roberts, em nome da maioria de seis conservadores contra os progressistas.

“A [doutrina] Chevron foi anulada”, acrescentou.

A jurisprudência Chevron “tornou-se um pilar da governação moderna, apoiando os esforços de regulamentação de todos os tipos, como, para referir alguns, sobre a qualidade do ar e da água, a segurança dos alimentos e dos medicamentos e a honestidade dos mercados financeiros”, objectou a juíza progressista Elena Kagan, na sua declaração de voto contra.

Os críticos da doutrina Chevron argumentavam que a interpretação das leis é da competência do poder judicial e não das agências federais, que dependem do poder executivo.

Paradoxalmente, na altura em que surgiu, esta decisão representou um êxito para o Governo do então Presidente republicano, Ronald Reagan, que acusava os juízes progressistas de enterrarem as empresas com regulamentação exagerada.

O Supremo Tribunal norte-americano decidiu também que as cidades podem proibir os sem-abrigo de dormir ao relento, mesmo nas zonas da Costa Oeste onde há insuficiência de albergues.

O caso é o mais significativo em décadas a ser apresentado à mais alta instância judicial do país sobre a questão e surge numa altura em que um número crescente de pessoas nos Estados Unidos não tem um lugar permanente para viver.

Numa decisão tomada por seis votos a favor e três contra, que segue uma linha ideológica, o Supremo Tribunal anulou uma decisão de um tribunal de segunda instância de São Francisco que considerou que a proibição de dormir na rua constituía um castigo cruel e invulgar.

Estima-se que haja mais de 650.000 pessoas sem-abrigo no país, o número mais elevado desde que começou a ser realizado um inquérito anual para fazer o ponto da situação, em 2007. Quase metade destas pessoas dorme ao relento. Os adultos mais velhos, as pessoas LGBTQ+ (Lésbicas, ‘Gays’, Bissexuais, Transgénero, ‘Queer’ e outras) e as pessoas não-caucasianas são afetadas de forma desproporcionada, afirmam os defensores dos direitos humanos.

Supremo dificulta acusação por obstrução a arguidos do assalto ao Capitólio

Noutra das decisões desta sexta-feira, o Supremo Tribunal dos EUA tornou ainda mais difícil acusar os arguidos do assalto ao Capitólio por obstrução, uma alegação que também foi apresentada contra o ex-Presidente norte-americano Donald Trump.

Os juízes decidiram por seis votos a favor contra três que a acusação de obstrução de um processo oficial, promulgada em 2002 em resposta ao escândalo financeiro que derrubou a Enron Corp., deve incluir provas de que os arguidos tentaram adulterar ou destruir documentos.

Apenas algumas das pessoas que atacaram violentamente o Capitólio em 6 de janeiro de 2021 se enquadram nesta categoria.

A decisão poderá ser usada como fundamento para as alegações de Trump e dos seus aliados republicanos de que o Departamento de Justiça tratou injustamente os arguidos do motim no Capitólio.

Não é claro como é que a decisão do tribunal afetará o caso contra Trump em Washington, embora o procurador especial Jack Smith tenha dito que as acusações enfrentadas pelo ex-presidente não seriam atingidas.

O tribunal superior devolveu o caso do ex-polícia da Pensilvânia Joseph Fischer a um tribunal inferior para determinar se pode ser acusado de obstrução.

Fischer foi acusado pelo seu papel na interrupção da certificação do Congresso da vitória do democrata Joe Biden nas eleições presidenciais de 2020 sobre Trump.

O antigo agente está entre as cerca de 350 pessoas acusadas de obstrução. Alguns declararam-se culpados ou foram condenados por delitos menores.

Uma leitura ampla do estatuto de obstrução "também criminalizaria uma vasta gama de condutas prosaicas, expondo os activistas e lobistas a décadas de prisão", escreveu o presidente do tribunal no seu parecer.

Cerca de 170 arguidos da insurreição do Capitólio foram condenados por obstrução ou conspiração para interromper a sessão conjunta do Congresso de 6 de janeiro, incluindo os líderes de dois grupos extremistas de extrema-direita, os Proud Boys e os Oath Keepers.

Alguns manifestantes conseguiram mesmo a libertação antecipada da prisão enquanto os recursos estavam pendentes devido a preocupações de que poderiam acabar por cumprir pena durante mais tempo do que deveriam se o Supremo Tribunal decidisse contra o Departamento de Justiça.

Inclui-se nesta lista Kevin Seefried, um homem de Delaware que ameaçou um polícia negro com um mastro preso a uma bandeira de batalha da Confederação enquanto invadia o Capitólio.

Seefried foi condenado no ano passado a três anos de prisão, mas um juiz ordenou recentemente que fosse libertado um ano depois, enquanto se aguarda a decisão do Supremo Tribunal.

Mais de 1.400 pessoas foram acusadas de crimes federais relacionados com os distúrbios no Capitólio. Cerca de mil deles declararam-se culpados ou foram condenados por um júri ou juiz após os respetivos julgamentos.

O gabinete do procurador dos Estados Unidos em Washington, que geriu os processos relativos aos acontecimentos de 6 de janeiro, disse que ninguém que tenha sido condenado ou acusado de obstrução será completamente ilibado por causa da decisão.

Cada arguido tem também outras acusações de crime ou contravenção, ou ambas, disseram os procuradores.

Para cerca de 50 pessoas condenadas, a obstrução foi a única acusação de crime, disseram os procuradores. Destes, cerca de duas dezenas que ainda cumprem a pena são os mais suscetíveis de serem afetados pela decisão.