Frequência dos grandes incêndios florestais duplicou nos últimos 20 anos

Impulsionados pela crise climática, os incêndios florestais de grandes proporções tornaram-se mais frequentes ao longo das últimas décadas, e sobretudo desde 2017, sugere estudo científico.

Foto
Grande incêndio que teve início em Pedrógão Grande, em Junho de 2017, propagando-se posteriormente para Pampilhosa da Serra Daniel Rocha/ARQUIVO
Ouça este artigo
00:00
04:52

A frequência e a magnitude de grandes incêndios florestais podem ter duplicado ao longo das últimas duas décadas, sendo que estes fenómenos climáticos extremos intensificaram-se desde 2017. Estas são as principais conclusões de um estudo publicado nesta segunda-feira na revista científica Nature Ecology & Evolution.

“Esperava encontrar algum crescimento, mas esta taxa de aumento alarmou-me. Os efeitos das alterações climáticas já não são uma coisa do futuro. Estamos agora mesmo a assistir à manifestação de uma atmosfera seca e quente”, afirma ao PÚBLICO o primeiro autor Calum Cunningham, investigador da Universidade da Tasmânia, na Austrália.

Os cientistas recorreram a 21 anos de dados de satélite para não só identificar focos de incêndio activos, mas também calcular a intensidade total desses fenómenos extremos no planeta. Calum Cunningham admite que, à luz das ciências climáticas, cerca de duas décadas de dados “não é um período muito longo”, mas afirma que isto torna “os resultados da duplicação dos fenómenos extremos ainda mais significativos”.

O cientista refere que os satélites MODIS da agência espacial norte-americana (NASA, na sigla em inglês) passam por cima das nossas cabeças quatro vezes por dia, observando os incêndios em toda a superfície da Terra. Estes dispositivos estão a operar deste o início deste século e oferecem aos cientistas uma ferramenta para avaliar como o fogo à superfície do planeta está a mudar.

“É importante sublinhar que os satélites medem a energia libertada pelos incêndios. Em vez de considerarmos todos os incêndios da mesma forma, nós analisámos a forma como os eventos energeticamente extremos (aqueles que libertam enormes quantidades de energia e causam danos graves aos ecossistemas, às sociedades e ao clima) mudaram em termos de frequência e intensidade. Estes são, sem dúvida, os incêndios mais importantes em que nos devemos concentrar”, afirma Calum Cunningham.

Tragédia de Pedrógão em 2017

Portugal está representado nesse longo inventário com diferentes fogos em áreas verdes, incluindo a tragédia de Pedrógão Grande, em Junho de 2017. “Portugal tem registado vários incêndios extraordinariamente intensos nos últimos anos. A zona climática mediterrânica, em geral, foi um dos principais focos destes incêndios extremos”, comenta Cunningham, numa resposta enviada por email.

O estudo mostra que a o Neárctico (região que inclui a América do Norte e a Gronelândia) e a Australásia (Austrália, Nova Guiné, Nova Zelândia e algumas ilhas da Indonésia) foram as regiões mais afectadas por fenómenos extremos. O aumento desses mesmos episódios terá sido impulsionado sobretudo por incêndios exuberantes em bosques de coníferas e florestas boreais, tanto na América do Norte como na Rússia.

Foto
Incêndio na zona Oeste de Sydney (uma das maiores cidades da Austrália) em Dezembro de 2019 DAN HIMBRECHTS/EPA

Com a subida das temperaturas médias na Terra, as paisagens tendem a ficar mais áridas e, consequentemente, mais facilmente inflamáveis. É por isso que a crise climática leva a um aumento não só da frequência, mas também da intensidade de grandes incêndios florestais. Sempre houve fogos em áreas verdes, mas agora estes fenómenos ocorrem de forma mais violenta e regular.

Os fogos florestais extremos “estão associados a consequências ecológicas, sociais e económicas extremas, incluindo a emissão de grandes quantidades de fumo e gases com efeito de estufa que ameaçam acelerar ainda mais o aquecimento [da Terra]”, lê-se no estudo da Ecology Nature & Evolution.

“A literatura científica mostra já há algum tempo que o clima está a aumentar os incêndios e prevê que essa tendência se acentuará. Ao centrar-se nos fenómenos extremos (e não nas médias), este novo trabalho é importante porque revela a manifestação dessa mudança no clima de incêndios. Demonstra que as alterações climáticas não são um fenómeno longínquo”, explica o primeiro autor ao PÚBLICO.

O que podemos fazer?

Sabendo que os incêndios extremos estão a aumentar, o que podemos fazer? Calum Cunningham afirma que devemos responder com “uma abordagem multifacetada”, ou seja, lutando simultaneamente em várias frentes. Se, por um lado, não podemos deixar de reduzir drasticamente as emissões de gases com efeito de estufa, por outro, temos de apostar em estratégias de adaptação. E uma delas passa, por exemplo, por mitigar os incêndios através de técnicas de gestão do combustível acumulado nas florestas.

“Os povos originários australianos, por exemplo, geriram os ecossistemas durante milénios através da utilização frequente de fogo frio, o que provavelmente impediu o aparecimento de grandes incêndios catastróficos”, exemplifica Calum Cunningham. O fogo frio consiste num tipo de combustão de baixa intensidade, geralmente aceso intencionalmente num dia de tempo ameno.

Sem o uso sistemático destas e de outras estratégias, as consequências podem ser devastadoras. Durante o chamado Verão Negro da Austrália, em 2019 e 2020, quando incêndios libertaram quantidades extraordinárias de fumo e de emissões, aproximadamente 2,8 mil milhões de vertebrados morreram, refere o estudo. Estes fenómenos intensos também destruíram a área geográfica antes ocupada por 116 espécies de plantas nativas.