Aqui na América
O ensino doméstico já não é uma coisa estranha
Notas made in USA sobre a vida americana. Pedro Guerreiro escreve a partir dos Estados Unidos.
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É inevitável: entre os amigos que fazemos no trabalho e os que vamos ganhando à boleia de relacionamentos, tendemos a socializar com pessoas das mesmas idades e que estão nas mesmas fases da vida. E aqui à minha volta, no Vermont, entre os 30 e muitos e os 40 e poucos, quase todos os meus amigos e conhecidos são pais e mães de crianças em idade escolar. Tanto que, há uns dias, um amigo comentava que já dava para formar uma turma de miúdos e ensiná-los em casa.
Confessei a minha ignorância: mas isso do ensino doméstico nos Estados Unidos não era uma coisa dos fundamentalistas religiosos? Já não é bem assim, lá me explicou.
Desde então, andei a ler sobre o assunto, sobretudo um magnífico dossiê do Washington Post sobre o tema, e aprendi que o ensino doméstico nos Estados Unidos disparou com a pandemia e é hoje uma modalidade procurada por famílias de perfil muito diverso.
A última estimativa apontava, em 2019, para 1,5 milhões de crianças a aprender em casa. Um levantamento feito pelo WaPo em 2023 colocava a cifra actual entre os 1,9 e os 2,7 milhões. Entre os anos lectivos de 2017-18 e 2022-23, o crescimento do ensino doméstico superou o do ensino privado, e sobretudo à custa do ensino público, que perdeu estudantes.
Continuamos a falar de uma minoria (à volta de 6% dos estudantes norte-americanos), mas já deixámos de falar de um nicho. A pandemia mostrou a muitas famílias americanas – sobretudo as de melhor condição económica; logo, com acesso a melhores recursos tecnológicos e educativos – que é possível educar crianças e adolescentes em casa.
A adesão ao ensino doméstico aumentou em 2020, mas não diminuiu necessariamente desde então. Em estados como Nova Iorque, Dacota do Sul e Rhode Island, bem como no Distrito de Colúmbia (da capital Washington), duplicou nos últimos cinco anos.
Esse conjunto de estados comprova que o ensino doméstico deixou de ser uma bizarria dos enclaves ultra-evangélicos do Sul e do Oeste. Em Nova Iorque, foi em Brooklyn e no Bronx e não no Upstate rural que a modalidade mais cresceu. E o aumento percentual é de dois dígitos em quase todo o país, da Califórnia (78%) ao Tennessee (77%).
Deixou também de ser uma opção procurada apenas por famílias brancas. Em 2019, ano do último levantamento feito pelo governo norte-americano, três quartos dos alunos em casa eram brancos; agora serão menos de metade, muito pelo aumento da adesão das famílias hispânicas.
Quanto aos motivos que levam os pais a optar por educar os filhos em casa, a religião deixou de ser razão maioritária, como era há uma década. Eis os argumentos maioritários, segundo uma sondagem publicada também pelo WaPo em 2023: preocupações com o ambiente escolar, 74%; procura por uma formação moral, 68%; desagrado com o modelo e o currículo educativo, 64%; receio de tiroteios nas escolas, 62%; preocupações com o bullying, 58%.
Entre os motivos expressos por uma minoria dos pais, mas ainda assim em número relevante, está o desagrado com a influência "liberal" ("de esquerda", no contexto americano) nas escolas (46%), o receio de que a criança seja vítima de discriminação (41%) ou a preocupação com a influência conservadora nas escolas (26%). Fenómeno também minoritário, mas com importância relativa no seu contexto: há muitos pais americanos a optar pelo ensino doméstico em casos de dificuldades de aprendizagem relacionadas com o autismo e a hiperactividade, com queixas sobre a falta de recursos e de atenção das escolas.
As motivações religiosas, por fim, estão mesmo em queda: se mais de 60% dos encarregados de educação optavam pelo ensino em casa por essa razão em 2012, apenas 34% o fazem agora.
Cerca de metade dos pais que têm os filhos a aprender em casa identificam-se como democratas, quando até à pandemia eram mais os republicanos, à razão de três para um. (Para quem estiver a pensar sobre a questão das vacinas e das máscaras durante a pandemia: foram tantos os pais a tirar os filhos da escola por criticarem o excesso de medidas como aqueles que o fizeram pela sua falta.)
Também ultrapassada é a imagem de um dos progenitores, quase sempre a mãe, que abdica da carreira para ensinar os filhos em casa – ainda existe, mas já não é a regra. Mais de metade das crianças aprende agora através de recursos online, mais de metade conta ocasionalmente com um professor ou tutor, e cerca de um quinto poderá frequentar aulas com crianças de outras famílias que optaram pelo ensino doméstico.
Está a crescer o número de cooperativas de pais e de micro-escolas mais ou menos formais para estas situações. Surgem até sites como o Prenda, uma espécie de Airbnb em que pessoas sem habilitação formal para ensinar abrem as portas das suas casas para leccionar um currículo predefinido, e serviços como os KaiPods, que fazem lembrar os espaços de coworking dos adultos mas, aqui, são destinados a crianças e disponibilizam um coach (novamente, alguém que assume a figura de um professor mas que não está legalmente habilitado a apresentar-se como tal). Ou sites como o Outschool, um mercado de aulas e tutores online. Há ainda recursos gratuitos, como os da Khan Academy (que não se apresenta como uma alternativa à escola, mas como um complemento).
Para além de uma oferta cada vez maior e mais diversificada de serviços de ensino doméstico, pesa também o apoio financeiro prestado por vários estados com programas de vouchers que abrangem aquela modalidade, bem como por fundações e organizações não-governamentais que promovem o ensino em casa (frequentemente por motivos religiosos e ideológicos).
Há, evidentemente, o reverso da medalha. Em vários estados norte-americanos, as crianças desaparecem do sistema quando os pais optam por tê-las em casa. Pode ser difícil aferir a qualidade do ensino prestado, sobretudo nos 11 estados que não prevêem qualquer tipo de teste para os estudantes em casa. Longe da vista de outros adultos, como um professor, ficam também ocultas as suspeitas de abusos cometidos no seio da família, havendo registo de vários casos graves em que a opção pelo ensino doméstico serviu de disfarce para crimes.
Há, também, um efeito perverso sobre o sistema público de ensino: na maior parte dos estados, o financiamento das escolas é determinado pelo número de alunos matriculados. O crescimento do ensino doméstico implica a diminuição dos recursos.
Há, por fim, e para além de eventuais lacunas educativas, tudo o que os estudantes podem perder quando a sala de aulas é a sua própria casa: amigos, competências de socialização, exposição a outras opiniões e experiências de vida, momentos formativos comuns entre os adolescentes que vão à escola. Vale a pena espreitar um fórum de antigos estudantes domésticos no Reddit para conhecer as suas dificuldades, mais tarde, como jovens adultos na universidade e nos seus primeiros empregos. Haverá também, claro, quem tenha testemunhos positivos. Mas são riscos a avaliar pelos pais.
Em Portugal, o ensino doméstico continua a ser uma modalidade quase inexistente. Em 2019, eram cerca de 900 os estudantes inscritos no ensino doméstico e no ensino individual (quando o aluno dispõe de um professor particular). As famílias portuguesas têm de pedir autorização ao director da escola da área de residência, com quem têm de partilhar o projecto educativo, e os estudantes não estão dispensados das provas de aferição e dos exames nacionais. Mas é também um fenómeno em forte crescimento: em 2012/13, havia apenas 63 estudantes inscritos no ensino doméstico ou individual.