Cheias no Brasil: um “cenário de guerra” com gente de olhos vazios, destruição e mortes
Com a descida da águas das cheias no Rio Grande do Sul, no Brasil, começam os trabalhos de limpeza e reconstrução. Há 18 mil pessoas em abrigos temporários. Registaram-se 17 mortes por leptospirose.
Com o recuo das águas que devastaram em Maio o estado brasileiro do Rio Grande do Sul, chegou o tempo da limpeza e da reconstrução. Enquanto mais de 18 mil desalojados permanecem em abrigos provisórios, muitas famílias estão a remover o lodo que impregna paredes e objectos para poder, enfim, voltar a dormir em casa.
“Eu levei 23 dias para voltar para minha casa. A água subiu 3,5 metros de altura, cobriu todo o primeiro andar, tivemos de ficar no segundo piso à espera que um bote nos resgatasse no dia 3 de Maio”, conta Fábio Cabral Silva, um funcionário público de 59 anos, numa conversa telefónica com o PÚBLICO.
Voltar a casa não é sinónimo de dormir em casa. Voltar é poder pisar no chão que lhe pertence, mas ainda repleto de uma sujidade “que não é um lodo comum”. Já pernoitar numa moradia que esteve submersa numa “gordura fedorenta dos esgotos”, como define Fábio Cabral Silva, exige uma demorada operação de limpeza. No caso deste oficial de justiça, o trabalho árduo levou mais de uma semana e exigiu produtos químicos especiais.
“As pessoas pensam que é só lama e basta usar água sanitária [lixívia] para limpar, mas não é assim. São mesmo necessários detergentes industriais porque fica uma gordura nas paredes e nas coisas, os fungos crescem com muita rapidez porque aquela água ficou parada uns 20 dias, como num aquário, e os móveis e electrodomésticos que estiveram ali mergulhados não têm recuperação possível”, explica.
Fábio Cabral Silva diz que pôde, na quarta-feira, finalmente passar a noite com a família na sua moradia em Canoas – um dos municípios mais afectados pelo fenómeno climático extremo no Rio Grande do Sul. No bairro onde mora, conta, outros vizinhos fazem agora o mesmo: lavam o chão, deitam fora pedaços do passado e tentam recomeçar.
“Hoje quase não se consegue entrar no bairro, tamanha é a quantidade de entulho. Todas as casas perderam tudo na parte de baixo, que ficou alagada, e as coisas foram atiradas para a rua. O que ficou nas casas foi só mesmo a parede e o telhado”, comenta o funcionário público.
A ameaça da leptospirose
Os destroços amontoam-se de uma tal forma que, descreve, “mais parece um cenário de guerra”. As pessoas usam máscaras e botas de protecção para realizar as operações de limpeza nas casas, por forma a se protegerem de doenças comuns após inundações, como a leptospirose e a hepatite do tipo A.
Até ao momento, 17 pessoas já morreram de leptospirose, uma doença causada por uma bactéria transmitida pelo contacto com a urina de animais, sobretudo ratos. A Secretaria de Estado de Saúde do Rio Grande do Sul informou que foram notificados mais de 4500 casos, dos quais mais de 240 estão confirmados, segundo a Agência Brasil.
“Um segurança do nosso bairro contaminou-se quando foi limpar a casa – é uma pena, a informação estava bem divulgada, mas muita gente acaba por não ter acesso”, lamenta Fábio Cabral Silva, que fez o tratamento profiláctico com antibiótico antes de começar os trabalhos de limpeza. Além da profilaxia, o uso de botas e luvas é indispensável para quem está a higienizar áreas alagadas ou com lamas.
O impacte das cheias na saúde humana passa também pelo domínio mental. Um estudo realizado por psiquiatras do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul, mostrou que a população da cidade com rendimento familiar mais baixo sofre mais com ansiedade, depressão e esgotamento do que as pessoas com rendimento familiar mais alto.
Independentemente do recorte de classe, Fábio Cabral Silva tem a percepção de que, no seu bairro, “há muitas pessoas a caminhar na rua de olhos vazios”. Existe na comunidade uma incerteza em relação ao futuro, um “doloroso” sentimento de perda ligado não apenas aos bens materiais, mas também às referências e práticas colectivas.
Das cheias históricas de Maio de 1941 – que até hoje eram consideradas as maiores de sempre no Rio Grande do Sul –, persistiu a expressão infeliz “os abobados da enchente”, que descreve exactamente esse olhar vazio num grupo da população. O objectivo é exprimir um grau tal de estupefacção que poderia ser até confundido com deficiência mental. Hoje, passados 83 anos, esse vazio dentro dos olhos parece estar de volta, acredita Fábio.
“Nada mais é o que era e ninguém sabe o que será. A gente tem uma ideia de que muitos vizinhos não conseguirão retornar ao nosso bairro e que aquela vida comunitária que existia não vai ser mais a mesma. Não vamos encontrar as mesmas pessoas”, emociona-se o oficial de justiça.
Apoio às famílias desalojadas
Roseli Mota, de 43 anos, formada em Contabilidade – mas actualmente sem trabalho –, contou ao PÚBLICO que sente medo da previsão de novas chuvas. Perdeu todos os móveis que tinha na casa onde morava no centro de Montenegro, situada perto da margem ribeirinha. Quando as águas subiram, a família foi obrigada a mudar-se para Costa da Serra, no interior do município.
“Vou ter de comprar praticamente tudo. Tenho agora tudo emprestado ou de doação, estamos a aguardar o auxílio do Governo. Já fizemos o cadastro online há duas semanas, mas a demanda é muito grande. Estou à espera desse dinheiro para comprar o que falta dentro de casa”, explica Roseli Mota.
A família tem dois filhos, um de 11 e outro de 18 anos, dois cães e uma gata. Actualmente, a família faz as refeições numa mesa improvisada. Perderam os móveis e, agora, terão de preencher a casa aos poucos. Consideram-se privilegiados por terem conseguido salvar a maioria dos electrodomésticos e por terem um tecto.
Aos desalojados elegíveis, o Governo federal prometeu novas habitações ao abrigo da iniciativa Minha Casa, Minha Vida (um programa nacional de habitação popular criado pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva em 2009).
A família de Roseli Mota viveu muitos anos em Costa da Serra, tendo trocado há dois anos o interior de Montenegro pelo centro em busca de mais oportunidades profissionais. Com a tragédia climática, que até agora foi responsável por 175 mortos, a família Mota distancia-se novamente do rio em busca de uma só coisa: segurança.
“Perdemos uma parte da vida da gente: fotos, coisas pessoais. Para já, vamos ficar por aqui, estamos seguros aqui”, diz Roseli Mota, numa chamada telefónica com o PÚBLICO. Não tem planos de voltar para o centro da cidade.
Casas como aquela em que Roseli morava, relativamente próximas das margens ribeirinhas, constituem exemplos de ocupação na frente de rio que, de acordo com especialistas, tornaram este fenómeno climático extremo mais trágico.
Cientistas climáticos do grupo World Weather Attribution estudaram recentemente o caso do Rio Grande do Sul, combinando dados meteorológicos com modelos climáticos, e concluíram que as alterações climáticas tornaram cheias no Sul do Brasil cerca de 6% a 9% mais intensas. A tragédia também foi intensificada pelo padrão climático El Niño.
A reconstrução das cidades vai exigir uma lógica de planeamento urbano distinta, com menos impermeabilização e mais áreas verdes, menos construção nas encostas e nas margens ribeirinhas. Em resumo, o nosso olhar para regiões mais vulneráveis, como o Rio Grande do Sul, terá obrigatoriamente de passar por uma lente climática.