Professores: procuram-se

O recrutamento de outros profissionais para a docência configura um descrédito para a profissão, ao minimizar a importância da Pedagogia e das didáticas para a qualidade do ensino.

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"Os fatores de falta de atratividade da profissão são transversais a todos os candidatos" Daniel Rocha/Arquivo
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Uma das medidas apontadas para minimizar a falta de professores nas escolas é a de abrir a profissão a outros candidatos, com outro tipo de formações. Esta ideia, que não é nova, foi testada nos anos 1980, quando a democratização acelerada do ensino criou a necessidade de recorrer a este tipo de soluções para assegurar as aulas de milhares de alunos. Eu fui precisamente uma dessas alunas.

Tive alguns professores nessas circunstâncias que até revelavam algum “jeito” para o ensino, mas outros nem por isso. Dava para perceber que desejavam arranjar rapidamente outra profissão que lhes permitisse pôr fim a uma carreira docente previsivelmente de curta duração. Mas outros tantos eram uma verdadeira desgraça. Recordo-me de uma professora de Francês que nos mandou como trabalho de casa conjugar um verbo num tempo verbal… que, na realidade, não existia. Não encontrando esta conjugação na gramática, fui pedir ajuda à minha mãe, que achou por bem que eu me inscrevesse na Alliance Française.

Que me digam que, tal como outrora, a solução agora proposta é apenas de recurso — enquanto se procura resolver o problema de forma sustentável e com visão de futuro — até posso compreender. Talvez seja preferível ter um profissional com formação na área científica lecionada do que não ter professor nenhum. Mas que esta ideia seja apresentada como uma solução para o problema é que já não consigo entender tão bem.

A defesa desta ideia parece ter subjacente o descrédito na Pedagogia e conduz a uma reflexão sobre as valências que são realmente importantes para se ser professor. É incontestável que uma sólida formação científica na área de docência é fundamental, pois é esta que garante o domínio dos conteúdos curriculares a trabalhar com os alunos. Mas não basta. Também é necessária formação pedagógica, que permita traduzir os conteúdos em atividades didáticas, planificar a sequência das mesmas e construir os materiais de suporte ao desenvolvimento do trabalho dos alunos (fichas de trabalho, guiões de atividades, tarefas práticas, etc.).

Por exemplo, quando se pretende trabalhar com os alunos do 1.º ciclo o sistema de numeração de posição decimal, não é suficiente que o profissional conheça o sistema de numeração. É essencial que seja capaz de criar sequências de aprendizagem, recorrendo a materiais didáticos, como o MAB e o ábaco vertical, para que os alunos consigam compreender e integrar os conhecimentos matemáticos. E é igualmente relevante que consiga prever os passos para fazer o caminho das aprendizagens concretas para as abstratas, propondo os exercícios de sistematização e treino adequados para o efeito.

É por este motivo que o recrutamento de outros profissionais para a docência configura um descrédito para a profissão, ao minimizar a importância da Pedagogia e das didáticas para a qualidade do ensino. Também revela o pouco relevo dado a disciplinas presentes na formação inicial dos docentes, como a Psicologia, que permite conhecer as etapas do desenvolvimento das crianças, aborda estratégias para a resolução de conflitos em sala de aula e promove competências para o diálogo com as famílias. Ainda para mais num contexto em que há tantos problemas comportamentais e disfunções sociais com impacto no quotidiano escolar, a formação para lidar com estas questões desafiantes e disruptivas não é de somenos importância.

Recordo a propósito o relato de um candidato a professor de Matemática que foi colocado recentemente numa escola situada num contexto socioeconómico desfavorecido. Lá que começou a primeira aula com boa vontade até começou, mas no segundo tempo, perante a atitude de desafio e indisciplina por parte dos alunos, este candidato não demonstrou a resiliência necessária perante as agruras da profissão: pura e simplesmente, atirou com o apagador ao quadro da sala de aula, proferiu uma série de impropérios que não ficaria bem reproduzir e… desapareceu da escola para todo o sempre.

Chegada a este ponto, há outra dúvida que se me coloca perante a possibilidade de minimizar o problema da falta de professores com a abertura da profissão a outros candidatos. E essa dúvida é premente: se a profissão não parece ser suficientemente atrativa para atrair novos candidatos para o ensino e para manter no ativo os professores de carreira que abandonam a profissão, por que motivo há-de ser mais atrativa para outros candidatos que não escolheram a via de ensino para as suas profissões?

É que os fatores de falta de atratividade da profissão são transversais a todos os candidatos — docentes e não docentes —, e enquanto não se resolver este problema de fundo parece-me que é muito difícil, para não dizer impossível, resolver o problema da falta de professores. Pode ser que me esteja a escapar alguma coisa, mas não consigo perceber o que poderá levar um quadro formado em Matemática, Inglês, Físico-Química ou Informática (só para falar em alguns dos grupos de recrutamento mais carenciados) a querer abraçar a carreira docente. Se calhar, se estiver a necessitar de emprego, até pode ser que se candidate, mas de acordo com a lógica do mercado de trabalho, será mais difícil a sua fixação na profissão. Poderemos, nestas circunstâncias, ter temporariamente no sistema profissionais-que-fazem-de-professores-enquanto-procuram-outro-emprego, o que, como é óbvio, também não resolve o problema de fundo… Que continua a ser o da falta de professores.

Ah, e claro, falta o ingrediente que pode fazer toda a diferença numa profissão como a de ensinar: a vocação. Mas, seja lá o que isso for — porque a vocação é algo difícil de definir —, parece-me que se tem utilizado pouco esta palavra. Talvez tenhamos de reafirmar o valor da palavra vocação. Se não for pedir demais.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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