A última tanoaria visitável de Esmoriz começou “numa garagem”

A Josafer integra a rede museológica de Ovar — abriu portas ao turismo em 2015 — e por estes dias recebe o Tan Tan Tann para mais um espectáculo “fora da caixa” e a tradicional “macaca rambóia”.

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Sandra Fernandes representa a terceira geração da sua família à frente da tanoaria Josafer, em Esmoriz Nelson Garrido
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Está aberta a visitas desde 2015 e este fim-de-semana acolhe a 8.ª edição do Festival de Artes Performativa Contemporâneas de Esmoriz 2024, o Tan Tan Tann. A Josafer é a última tanoaria aberta a visitas hoje naquela freguesia de Ovar — Ovar chegou a ter "mais de 40 tanoarias" e Esmoriz é conhecida como "a capital da tanoaria em Portugal", lembra a responsável Sandra Fernandes. E a empresa familiar, fundada em 1962 pelo seu avô, na altura com um cunhado, orgulha-se disso. "O que nos moveu foi a possibilidade de alterar a ideia que as pessoas tinham da tanoaria."

"Dizem que a terceira geração é a mais perigosa, aquela que tende a arruinar os negócios de família", brinca Sandra, enquanto nos dá as boas-vindas. Dizem. Mas ali, na Josafer, Sandra e o irmão Filipe estão "a tentar" dar à empresa do pai novas perspectivas de futuro, um futuro que até passa por instalações novas, na "zona de cima da cidade" e com inauguração prevista para 2025.

Terão então outras condições para receber o turismo que já acolhem, mas perder-se-á a aura de uma oficina de outros tempos. O avô, conta-nos, "foi tanoeiro nas caves de vinho do Porto", em Vila Nova de Gaia, numa "época em que os tanoeiros eram pagos à peça" — "e também por causa disso levavam os filhos muito pequeninos para ajudar e 'cheirar a madeira', como se dizia" — e percorriam a pé o caminho, paralelo à Linha do Norte, que veio a ser baptizado como Rua dos Tanoeiros para na Aguda ou na Granja apanharem o comboio para a margem esquerda no rio Douro. "E nessa altura passavam a semana em Gaia. Saíam ao domingo à noite e voltavam à sexta."

Era uma vida dura, que a mecanização veio amenizar. "Um dos grandes clientes [desta e de outras tanoarias] era o Estado português, a ditadura", os cascos iam para Lisboa onde eram atestados com vinho de produtores de granel, "para serem enviados para o Ultramar". Quando, "a determinada altura, a opção passou a ser enviar contentores inteiros", as tanoarias ressentiram-se. Veio depois o período em que a clientela eram as adegas, portuguesas e espanholas, e, com a entrada de Portugal na União Europeia e "regras novas" para respeitar ("na altura da polémica das colheres de pau"), nova crise. O inox ficou mais acessível e muitos produtores de vinho fizeram a transição. Todo esse contexto histórico e a resenha histórica da própria Josafer são explicados no início de cada visita, na antiga garagem onde tudo começou. A produção propriamente dita fica lá trás.

A Josafer, ainda nas instalações originais, de 1962, é a última tanoaria visitável de Esmoriz
A tanoaria Josafer abriu portas ao turismo em 2015
Trabalha em cascos novos, recuperados e recondicionados, seja para o sector do vinho, seja para decoração, segmento que em tempos permitiu à Josafer manter-se "à tona"
A mecanização, a partir de 2012, começou pelos aros, que hoje são cortados com a ajuda de uma máquina e já não à força de braços
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A Josafer, ainda nas instalações originais, de 1962, é a última tanoaria visitável de Esmoriz

Cruzámo-nos com a equipa do Tan Tan Tann e ficámos a saber que a "macaca rambóia", o jantar que está incluído para quem for à Josafer ver o espectáculo deste sábado (Modos de Ver, 22h, Teatromosca e Imaginar do Gigante), também tem raízes nesse passado. Em tempos idos, os industriais de tanoaria juntavam-se e assavam carne nas fogueiras que davam forma aos barris. Acompanhavam com "vinho de pintar a malga", conta Sandra Fernandes, e histórias da profissão. "Muita gente desconhece este espaço. Esmoriz é terra de tanoeiros e havia todo o interesse que quem viesse de fora pudesse visitar este espaço", comenta, por seu turno, Pedro Saraiva, o director artístico do festival que quer fugir a convenções e mostrar "projectos emergentes, de gente nova, fora da caixa".

Voltemos ao inox. "O inox não é madeira" (não oferece tantas possibilidades de criação aos enólogos e produtores), mas o que é certo é que a crise na tanoaria atingiu em cheio o tecido empresarial de Ovar e nessa altura "a maior parte dos pais disse aos filhos: vai lá estudar". Sandra é uma dessas filhas da terra, estudou Serviço Social e trabalhou alguns anos na sua área de formação. Até que, em 2016, o apelo pelo negócio que é conversa à mesa de todas as refeições da família falou mais alto.

"Não fomos excepção. Passámos uma época complexa, mas tivemos alguma sorte." Uma empresa inglesa procurava vasos de madeira e quem faz um barril também faz um vaso, não é? "Foi isso que fizemos durante quase uma década: barris para decoração. À época, foi o que nos permitiu manter à tona." Depois, algumas casas de vinho do Porto foram perdendo capacidade interna, tinham menos tanoeiros ou pura e simplesmente já não os tinham, e houve uma que precisou de assistência. Conta Sandra que a família ficou surpreendida ao perceber que a maior parte dos barris que lhes entregavam para recuperar tinham como destino a produção de whisky no Norte da Grã-Bretanha. "Percebemos que havia potencial e começámos a contactar destilarias."

Hoje em dia, a Josafer mantém a produção de vasilhames para decoração, produz barris novos para vinho e ainda trabalha com destilarias de whisky, onde já se usam códigos QR para documentar o percurso dos barris. "É um requisito [das empresas], que estamos a tentar implementar." A tanoaria também trabalha com casas de vinho Madeira, Moscatel e Carcavelos, embora essas parcerias tenham menos expressão no negócio do que a ligação ao vinho do Porto.

Apesar de a mecanização tornar o trabalho menos penoso, não há quem lhe queira pegar. E sem perspectivas de que isso venha a mudar (nem sequer há cursos de carpinteiro a Norte, lamenta Sandra), vão safando o trabalho os imigrantes que a Josafer tem vindo a empregar.

A empresa comercializa barris com capacidades que vão dos três aos 500 litros. Recebe a madeira — "castanho português e carvalho francês, americano e algum europeu" — pré-cortada, que deixa a secar ao ar livre, nas traseiras da fábrica, "no mínimo 12 meses". E a chuva? É boa para a madeira, porque "vai penetrar nos poros da madeira e extrair compostos desagradáveis" para o vinho. "Engradar a madeira", fazer as pilhas que vemos ali ao sol e à chuva, "era o trabalho dos pequeninos", explica Sandra.

Novos, recuperados e recondicionados

Passámos pelo serrim e pelas fitas que a Josafer vende para a agricultura e, dentro da tanoaria, damos a volta ao processo de fabrico de barris novos. Se no passado a tradição era cada tanoeiro fazer o seu barril de fio a pavio, hoje o serviço é por estações, digamos assim. Cortam-se as extremidades das tábuas, "limpam-se" as futuras aduelas e "junta-se a madeira" (as peças que vão compor um casco). É nesta fase que se selecciona a madeira para decoração ou para o sector do vinho. A mecanização chegou em 2012 à Josafer e os mais antigos demoraram a afeiçoar-se às máquinas, que hoje percebem ser uma ajuda preciosa.

"A seguir fazemos aquilo a que chamamos levantar o barril." As fogueiras onde, num primeiro calor, a madeira é moldada e dobrada estavam desligadas aquando da visita do PÚBLICO, mas são normalmente o ponto de que os turistas, na sua maioria estrangeiros, mais gostam. O fogo "vai abraçar e dobrar a madeira sem que ela parta" e depois há uma prensa que aperta os aros metálicos provisórios, que mais à frente hão-de ser substituídos por aros definitivos. Esses aros chegam à Josafer em grandes bobines e antigamente eram cortados à força de braço, numa guilhotina em tudo semelhante à que as mercearias tinham para cortar bacalhau. A mecanização na empresa começou por ali.

Na mesma zona da oficina, vemos ainda a arrunhagem do tampo e o corte do entalhe no casco. Ainda antes de receberem os aros finais, os barris são polidos. E, finalmente, é-lhes feita a abertura para levarem o batoque. Antes de saírem da tanoaria, ainda é feito o teste da estanquidade e a higienização. A área de recuperação de barricas e barris fica no mesmo espaço, que é uma grande área aberta ("em miúda, vinha para cá andar de bicicleta", conta Sandra), e é de resto o palco do Tan Tan Tann deste ano. Na recuperação, quando o destino é o vinho tranquilo, é substituído tudo o que estiver danificado e o interior dos cascos é raspado; para vinhos fortificados "a ideia é manter o interior o mais intacto possível". O recondicionamento (transformar barris maiores em vasilhames mais pequenos, por exemplo) é outro serviço que a Josafer faz.

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A Josafer teve em tempos serração própria, mas hoje em dia a madeira que utilizam os seus tanoeiros já chega pré-cortada à empresa Nelson Garrido

"Cerca de 85% da produção é para exportação" e o sector da decoração, outrora tábua de salvação, representa "30% do negócio". A família Fernandes leva muito a sério a máxima de meter os ovos em vários cestos e tem inclusive, há 14 anos já, uma loja online dedicada ao cliente particular.

As visitas, para um mínimo de cinco pessoas, funcionam de segunda a sexta-feira das 8h às 12h e das 13h às 17h e aos sábados de manhã (8h-12h), custam 5 euros por pessoa (seniores pagam 4,50 e as crianças 4) e inserem-se numa filosofia de gestão que "quer uma tanoaria dinâmica".

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