A 4 de Julho celebraremos com fogo-de-artifício: Do Fundo do Coração, de Coppola, de novo em sala
Para além da obra-prima amaldiçoada estreada em 1982, a Midas Filmes vai distribuir no Outono Megalopolis, o último filme do cineasta.
Os milhares que fizeram fila às portas do Radio City Music Hall em Nova Iorque, num gélido e nevoento Janeiro de 1982, para conseguirem bilhetes para uma das duas sessões, 19h30 e 22h, da première do novo filme de Francis Ford Coppola estavam movidos pela curiosidade, mas também bastante arrefecidos por títulos sensacionalistas da imprensa de episódios anteriores do cinema americano e por uma mitologia mórbida — afinal, tratava-se do novo filme do turbulento, irresponsável realizador de Apocalypse Now.
De tal forma era assim que a sopa de salsicha que o italo-americano fizera distribuir para aquecer a pequena multidão não encorajou grandemente a generosidade daqueles primeiros espectadores. Começaria aí o massacre a Do Fundo do Coração (One from the Heart, no título original), produção de 13 milhões de dólares que, por via do incorrigível experimentalismo e da sede de aventura de Coppola, derrapou para os 25 milhões e cujo fracasso comercial levou à falência do sonho de independência do realizador, obrigando-o, durante toda a década seguinte, a saltitar de compromisso em compromisso para pagar dívidas.
Poucas horas depois dessa estreia, Francis Ford respondia a uma pergunta em conferência de imprensa: "O que sente, agora que toda a gente detesta o seu filme?". O destino, ou lá o que era, vinha cobrar a suposta arrogância de mais um movie brat que se comportara como um deus no plateau. Depois do ódio a As Portas do Céu (1981), de Michael Cimino, parecia moralizador detestar Do Fundo do Coração.
E detestaram-no até, com raras excepções, as luminárias da crítica americana da época, David Denby, Vincent Canby, Andrew Sarris, Pauline Kael. No máximo da sua empatia, foram sarcásticos: o homem deitara fora o bebé e filmara a água do banho. Isto é: esquecera-se das emoções e ocupara-se só do cenário, uma prodigiosa fantasia, a cidade de Las Vegas, com o aeroporto, a Strip e os bairros suburbanos, concebida no estúdio de Coppola, a Zoetrope, pelo production designer Dean Tavoularis. Como um décor de teatro por onde quatro actores deambulavam: um casal (Frederic Forrest e Terri Garr) que celebrava o aniversário do seu casamento no 4th of July, Dia da Independência americana, e as fantasias (Raúl Julia e Nastassja Kinski) que se vieram intrometer na relação. Nesse décor fazia-se ouvir o canto resolutamente triste de Tom Waits e Crystal Gayle, "Here comes the bride and there goes the groom, looks like a hurricane went through this room".
E foi assim que Do Fundo do Coração desapareceu das salas americanas. Como um nado-morto, foi chegando, mas já sem sopro de vida, aos chamados territórios internacionais, Portugal incluído. É esse filme, o daquele espantoso genérico com as miniaturas dos néons de Las Vegas, que iluminará de novo as salas portuguesas a 4 de Julho, precisamente no dia do fogo-de-artifício americano, através da Midas Filmes. Para o Outono fica, por sua vez, o lançamento de Megalopolis, o último filme do cineasta, que a mesma distribuidora trouxe do Festival de Cannes. Nessa altura, o "visionarismo" do cinema de Coppola poderá ser reequacionado, uma vez que se trata do mesmo gesto, da mesma mão. Com esta diferença: tinha então 43 anos, tem agora 85.
Reprise
É uma nova versão de Do Fundo do Coração, Digital 4K, a que aí vem, e a que Coppola chamou Reprise. Houve mais do que uma, ao longo destas décadas, que permitiram manter ou construir um resquício de memória — através das edições em DVD. Coppola gosta de periodicamente fazer a revisão dos seus filmes, como atestam as várias versões de Apocalypse Now (uma delas, a "Final Cut", foi estreada pela Midas em 2019) ou as novas cenas acrescentadas em recentes versões de Os Marginais (1983) e The Cotton Club (1984). Foi aparando a montagem de Do Fundo do Coração, a relação entre a imagem e o som, propondo outros takes das cenas e mesmo uma variação para o início: o ecrã a negro, apenas com o som das máquinas de jogo de Las Vegas a impor-se, é das mudanças mais visíveis e audíveis na Reprise.
A versão que chegará às salas portuguesas é mais curta (93 minutos) do que a que foi distribuída comercialmente (103). Isto porque o realizador, por exemplo, limou a economia das tribulações conjugais entre Frederic Forrest (1936-2023) e Terri Garr, o casal que no dia do aniversário de casamento, o 4 de Julho, encontra, respectivamente, Nastassja Kinski e Raúl Julia (1940-1994) — era o quarteto-base do argumento de Armyan Bernstein, e Coppola fez ecoar nele o seu impossível projecto de adaptar em quatro filmes As Afinidades Electivas, de Goethe.
Não há, propriamente, uma "cena da plantação francesa", o segmento que ficara de fora da montagem de 1979 de Apocalypse Now e que, ao ser integrado em 2001 na versão Redux, veio (des)equilibrar a experiência ao ponto de se poder perguntar se se trataria de um "outro" filme. Não. Mas há pormenores, muitos dos quais não visíveis "a olho nu", isto é, cuja fruição consciente se fará sobretudo com um trabalho comparativo sequência a sequência. A verdade é que, tendo em conta tudo o que lhe aconteceu, e porque a memória do filme não teve oportunidade de ser construída e fruída, qualquer que seja a sua versão, Do Fundo do Coração, o desastre que está para o seu realizador como As Portas do Céu está para Michael Cimino, Daisy Miller (1974) para Peter Bogdanovich, ou Sorcerer (1977) para William Friedkin, ficou condenado a revelar-se sempre como um novo filme para o espectador.
Por exemplo, iluminar-se isto: o que foi considerado um frágil "fait divers" amoroso — por aqueles que criticaram Coppola por se ter preocupado menos com as emoções do que com a experiência futurista de fazer cinema como teatro ao vivo — é, afinal, uma comovente ode às pequenas figuras atraídas pelo bruxulear do gigantesco sonho americano. E ainda isto, porque muitos foram os que se quedaram perplexos pelo facto de o realizador ter feito suceder ao seu filme-limite rodado em exteriores, Apocalypse Now, uma obra que mostrava afrontosamente os cenários de estúdio: afinal há nessa passagem uma fulminante continuidade; em ambos os casos, trata-se de um realizador obcecado pela obsessão americana do espectáculo e da sua construção. Chegaremos, de novo, a Megalopolis.
Dito de outra forma, o "adoro o cheiro do napalm pela manhã, cheira a vitória" de Robert Duvall em Apocalypse Now tem em Do Fundo do Coração um equivalente na formulação de Frederic Forrest: "Sabes o que é que está errado com a América, não sabes? É a luz, já não há segredos, nada é real."