Tráfico de cocaína ameaça habitats de aves raras na América Central
Narcotráfico ameaça dois terços dos principais habitats de aves raras da América Central. Repressão policial encoraja traficantes a avançarem para zonas remotas de florestas tropicais, diz estudo.
Actividades ligadas ao tráfico de cocaína estão a pôr em risco dois terços de áreas florestais vitais para 196 aves, incluindo 67 espécies migratórias que se reproduzem nos Estados Unidos e no Canadá, e passam o Inverno na América Central, revela um estudo publicado esta quarta-feira na revista científica Nature Sustainability.
Amanda Rodewald, primeira autora do estudo, explica que, quando a repressão policial aperta, os narcotraficantes avançam para zonas remotas das florestas, onde a cobertura verde é destruída para dar lugar a estradas, pastagens e pistas de aterragem para pequenas aeronaves. Por outras palavras, as estratégias de combate à droga podem ter como consequência indirecta a ameaça à biodiversidade.
“O nosso estudo é uma chamada de atenção para o facto de não podermos abordar os problemas sociais no vácuo, uma vez que estes podem ter consequências ambientais não intencionais que prejudicam a conservação”, afirma ao PÚBLICO Amanda Rodewald, directora sénior do Centro de Estudos das Populações de Aves do Laboratório de Ornitologia de Cornell, nos Estados Unidos.
Mais de metade da população global de uma em cada cinco espécies migratórias habita áreas que se tornaram atractivas para o tráfico após o pico da pressão policial, avaliada neste estudo através do volume de cocaína apreendida. Cerca de 90% da população mundial de toutinegras-de-bico-dourado (Setophaga chrysoparia), ameaçadas de extinção nos Estados Unidos, por exemplo, passam o Inverno nessas paisagens vulneráveis.
“O nosso estudo é o primeiro a examinar explicitamente a relação entre a desflorestação por narcotráfico e a biodiversidade, ao quantificar, por um lado, a sobreposição espacial com espécies migratórias e residentes tropicais e, por outro, a estimar a proporção de populações globais de 67 espécies migratórias que podem estar ameaçadas pela desflorestação motivada pelas actividades ligadas ao tráfico”, observa Amanda Rodewald, numa resposta enviada por email.
Desflorestação multiplica ameaças
Estudos anteriores já haviam demonstrado que o narcotráfico é responsável por uma desflorestação significativa na América Central, representando mais de um terço em alguns países. As estradas e pistas de aterragem são construídas para o transporte do produto, ao passo que as pastagens de gado constituem uma forma de lavar o dinheiro obtido no narcotráfico.
As vias de acesso, uma vez abertas, acabam por estimular o desenvolvimento local e a remoção da cobertura vegetal. É por isso que os cientistas consideram a desflorestação, mesmo que num perímetro relativamente reduzido, um “multiplicador de ameaças”.
“A política de drogas dos EUA na América Central concentra-se no lado da oferta da equação, e a pressão da aplicação da lei desempenha um papel significativo no movimento das rotas de tráfico e nos locais de desmatamento de narcóticos”, disse o co-autor Nicholas Magliocca, professor associado da Universidade do Alabama.
O estudo da Nature Sustainability baseia-se em trabalhos etnográficos e de modelação anteriores realizados por Nicholas Magliocca e outros autores que investigam não só o uso do solo, mas também opções do narcotráfico ao longo do tempo consoante o risco e o lucro.
“Esta investigação dá uma ideia ainda mais completa dos danos causados pelo tráfico de droga e da forma como actualmente o combatemos”, afirmou Magliocca, citado numa nota de imprensa. “O comportamento adaptativo dos traficantes deve ser levado em consideração. É preciso fazer mais do que perseguir reactivamente os traficantes de drogas, que têm dinheiro e poder quase ilimitados na região. Não há dúvida de que se trata de uma situação complexa, fluida e perigosa”, acrescenta o cientista.
Nicholas Magliocca defende que, passadas quatro décadas, esta abordagem claramente não resultou. Pelo contrário, a rede de tráfico ramificou-se e tornou-se global. Se antes passava apenas pela América Central, agora esta região constitui uma plataforma de distribuição para o resto do mundo.
“Uma mensagem importante para mim é que o custo real e total da política de drogas dos Estados Unidos é muito maior do que a contabilidade actual, quando se tem em conta os impactos das consequências não intencionais”, afirma o cientista ao PÚBLICO.