Kongjian Yu quer transformar as cidades em esponjas, uma solução para cheias e secas

Cidades devem absorver e libertar água para enfrentar alterações climáticas, defende arquitecto paisagista. Planos de drenagem como o de Lisboa “são business as usual” e a longo prazo vão falhar, diz.

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O arquitecto paisagista Kongjian Yu tem vindo a desenvolver o conceito "cidades esponja". Tiago Bernardo Lopes
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“Vocês não têm árvores suficientes. Têm de plantar mais árvores e, ao fazê-lo, tornam o solo mais permeável”, observa o arquitecto paisagista Kongjian Yu, sobre as ruas do Porto, acabado de aterrar na cidade pela primeira vez.

O plantio de árvores é apenas um dos múltiplos passos que o arquitecto chinês propõe para que uma cidade possa encaixar-se no conceito que tem vindo a desenvolver e a implementar em várias metrópoles do seu país.

No fundo, “cidade esponja” é uma metáfora que serve para descrever áreas urbanas que sejam capazes de absorver água durante temporadas mais chuvosas e de a libertar durante épocas secas.

“É uma cidade resiliente à água”, simplifica Yu, em entrevista ao PÚBLICO, nos jardins do Palácio de Cristal, onde esteve, em Maio, para participar num congresso organizado pela Associação Nacional de Coberturas Verdes (ANCV).

O conceito que formulou com base na sua experiência enquanto filho de agricultores numa zona de monção da China, mas também enquanto estudante de Harvard, implica repensar a forma com construímos e gerimos o ciclo urbano da água.

Mesmo na área ajardinada onde se sentou a conversar com o PÚBLICO, observa, há pavimentos cimentados e sistemas de canalização enterrados para drenar a água. “Vivemos com uma aversão à água, estamos habituados a drená-la ao máximo e o mais rapidamente possível. A cidade-esponja é o completo oposto”, observa.

Essa “revolução na forma como pensamos” significa seguir três princípios: reter a água quando cai, ter solos permeáveis e que permitam a recarga de aquíferos; quando em movimento, é preciso abrandar a água, criar curvas, pontos de amortecimento, introduzir vegetação; adaptarmo-nos à água e evitar as soluções de betão.

O tamanho dos canos

Na base do problema, defende, está a construção da cidade moderna, com recurso a infra-estrutura “cinzenta” (sistemas construídos para gerir e transportar água e saneamento), que começou na Europa, foi adoptada pelos norte-americanos e depois replicada um pouco por todo o globo.

“Era uma solução fiável e dependente do cálculo de volumes de precipitação”, analisa. Ou seja, para escoar determinado volume de água, construíam-se túneis ou canalização de um dado diâmetro. “É completamente racional. Mas, quando se aplica um sistema a um clima que não é europeu, mediterrânico, falha-se totalmente.” E foi isso que aconteceu na China, que tem parte do território afectado por clima de monções, mas também na Índia, na China, em Singapura, na Malásia ou Indonésia, exemplifica.

Começa também a falhar na Europa, por causa das alterações climáticas. “Vão investir mais a tentar corrigir este sistema que falha? Podem duplicar o investimento, mas será sempre um montante gigantesco e irá falhar outra vez”, diz.

Quando a pergunta é sobre o plano de drenagem de Lisboa, que implica um investimento de 250 milhões de euros e, entre outros pontos, a abertura de dois grandes túneis, o arquitecto paisagista ri-se abertamente.

Obras de construção de um dos túneis do plano de drenagem de Lisboa. Miguel Madeira
Obras de construção de um dos túneis do plano de drenagem de Lisboa. Miguel Madeira
Obras de construção de um dos túneis do plano de drenagem de Lisboa. Miguel Madeira
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Obras de construção de um dos túneis do plano de drenagem de Lisboa. Miguel Madeira

“Esse é o modelo business as usual. Não vai resolver o problema”, diz. Além do gigante esforço financeiro, as grandes infra-estruturas – sejam túneis, diques ou outras soluções - são construídas em betão, material que tem um determinado tempo útil até que o desgaste provoque os seus danos. Depois disso, precisa de manutenção, o que implica novo e generoso investimento.

Acresce que os episódios de cheia são cada vez mais extremos e, mesmo que os sistemas estejam dimensionados para volumes que consideramos hoje históricos, é uma questão de tempo até que estes sejam superados. “Do ponto de vista económico, não é sustentável. É absurdo. A longo prazo é estúpido pensar que a tecnologia vai resolver o problema”, entende.

Reter a água na sua “esponja” significa que se pode fazer uso dela durante o outro extremo, nos períodos de seca, ajudando também a arrefecer a cidade em ondas de calor. “Se tiveres água, tens tudo. Se te livrares da água, terás problemas durante os períodos de seca. É uma oportunidade perdida”, nota.

Menos asfalto, menos carros

Em Março, numa entrevista ao The New York Times, Kongjian Yu disse que, se a superfície permeável de uma cidade ou espaços verdes ocuparem 20% a 40% da sua área, em teoria, pode-se resolver o problema das inundações urbanas.

Isso coloca problemas de espaço e, em centros urbanos consolidados, como é o caso da maioria das cidades europeias, esse é um dos recursos mais escassos. Mesmo olhando para a Europa, o arquitecto paisagista mantém a estimativa.

“Comparando com Tóquio e Hong Kong, vocês têm muito espaço”, responde. O contrário acontece com os níveis de precipitação, que são mais elevados a oriente. É tudo uma questão de desenho urbano, defende.

“Têm de se adaptar, de usar sistemas para manter água, empregar medidas de pequena escala em todo o lado, tanto quanto possível, desde coberturas verdes nos telhados, aos pátios, aos quintais”, defende.

No espaço público, as oportunidades são outras, mas implicam tomar decisões. O Porto, tal como Lisboa e várias das cidades que concentram grande parte da população portuguesa, tem rios a correr no seu subsolo, engolidos que foram pelo processo de urbanização.

Trazer algumas linhas de água à superfície ajudaria a tornar a cidade mais permeável. Os muitos lugares de estacionamento que viu na cidade, refere, também poderiam ser permeáveis. O único sacrifício é abandonar algum conforto do uso do carro”, aponta. E, mesmo mantendo alguma utilização para automóveis, não seria necessário cobrir tudo com asfalto. “Precisamos é de um plano ao nível da cidade e, no caso do Porto, acredito que isso poderia ser facilmente resolvido”, exemplifica.

Mas, para que esta “mudança holística na forma de pensar” a cidade aconteça, é preciso que os responsáveis políticos também sejam convencidos. Foi por aí que Kongjian Yu começou.

Kongjian Yu, arquitecto paisagista tem vindo a desenvolver o conceito "cidades esponja". Tiago Bernardo Lopes
Kongjian Yu, arquitecto paisagista tem vindo a desenvolver o conceito "cidades esponja". Tiago Bernardo Lopes
Kongjian Yu, arquitecto paisagista tem vindo a desenvolver o conceito "cidades esponja". Tiago Bernardo Lopes
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Kongjian Yu, arquitecto paisagista tem vindo a desenvolver o conceito "cidades esponja". Tiago Bernardo Lopes

Boom das cidades e cheias

O momento crítico foi quando regressou à China, em 1997, depois do doutoramento na Universidade de Harvard. “Era o tempo do boom das cidades chinesas” que se expandiam a grande velocidade, seguindo o modelo norte-americano de construção de betão em altura. “A prática era encanar rios, impermeabilizar zonas húmidas e destruir florestas ao longo dos rios. Percebi imediatamente que isso viria a dar problemas mais tarde”, recorda.

Para essa rápida avaliação contribuíram os 17 anos vividos com os pais, ambos agricultores, numa pequena aldeia não muito longe de Xangai, na região das monções, caracterizada por um Verão chuvoso e um Inverno seco.

Apesar das condições, quem ali vive, num lugar rodeado por sete lagos, descreve, conseguiu adaptar-se ao longo dos séculos. “Como? Retemos a água na montanha, na encosta, nas quintas, na aldeia.”

A ideia de tratar a água como um tesouro, ajudando assim a criar vegetação, atrair aves e biodiversidade, acompanhou-o durante a infância e ficou-lhe no subconsciente. Mais tarde observaria que, mesmo a arquitectura vernacular da região - com pátios ao centro que armazenavam a água recolhida pelos telhados – seguia esse princípio.

Estudou primeiro em Pequim, onde hoje dá aulas, depois nos Estados Unidos e, como o próprio descreve, combinou a educação de um agricultor com a formação em ecologia, planeamento regional e urbano e ciência moderna.

No regresso à China, sentiu que tinha de avisar os responsáveis políticos. Na viragem do milénio, escreveu centenas de cartas aos líderes chineses, do governo central aos autarcas, a avisar que tinham de restaurar os rios e as zonas húmidas, conta. Escreveu um livro, cuja versão integral está agora a ser traduzida para inglês, e também o distribuiu.

Foi insistindo, espalhando a mensagem, até que, em 2012, a capital do país sofreu umas cheias que mataram 79 pessoas. “De repente, Xi Jinping apercebeu-se de que teria de fazer algo”, diz.

Na sequência de várias decisões governamentais, no ano seguinte o país embarcou num programa experimental que envolvia 15 cidades com problemas de cheias. O financiamento ia para intervenções de pequena escala que pudessem ajudar a comprovar a sua eficácia. O programa foi crescendo, explica Yu, e já há mais de 70 cidades em processos experimentais.

Um dos casos de sucesso, aponta, é Sanya, na ilha de Hainan, cuja intervenção foi desenhada pela sua Turenscape, hoje uma das maiores empresas de arquitectura paisagista do mundo, onde trabalham mais de 600 pessoas

Foi ali, numa cidade insular particularmente atingida por inundações urbanas causadas pelas monções, o primeiro projecto experimental. Kongjian Yu desenhou um parque com uma zona húmida, mesmo numa área central da cidade, com cerca de 10 hectares.

Noutro ponto, por causa da subida do nível das águas, onde havia um muro de betão, instalaram um mangal (ecossistema costeiro arborizado e caracterizado por estar sujeito ao ritmo das marés).

A intervenção começou em 2015 e terminou em 2016. “O mangal criou uma linha costeira resiliente, abrandou a água e reduziu a força da natureza. Além disso, ficou bonito. Os dois projectos têm 10 anos e, até agora, reduzimos o problema”, afirma.

Soluções rio acima

A “cidade-esponja” valeu a Kongjian Yu atenção global e pode estar para a gestão da água como o urbanista Carlos Moreno está para a proximidade, com a sua “cidade dos 15 minutos”. São duas ideias populares que podem ajudar a resolver problemas dos grandes centros urbanos. Nos dois casos há exemplos práticos de aplicação dos princípios que defendem, mas também não lhes faltam críticos. Dizem que pode ajudar a prevenir cheias, mas que está longe de ser uma solução absoluta.

O custo é um dos temas frequentemente apontados quando se discute o conceito, mas o arquitecto paisagista garante que, no caso de Sanya, gastou-se um quarto do que aconteceria num “parque normal”. O investimento em pavimento é “mínimo”, diz, e a água que é retida alimenta a vegetação no futuro, cortando custos de manutenção. “Um verdadeiro projecto de cidade-esponja deve ser barato, com soluções com base na natureza e baixos requisitos de manutenção”, descreve.

Parque desenhado pela Turenscape na cidade chinesa de Sanya. DR
Parque desenhado pela Turenscape na cidade chinesa de Sanya. DR
Noutro ponto de Sanya, a solução passou por instalar um maguezal para mitigar a subida do nível das águas. DR
Noutro ponto de Sanya, a solução passou por instalar um maguezal para mitigar a subida do nível das águas. DR
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Parque desenhado pela Turenscape na cidade chinesa de Sanya. DR

Outro dos pontos fracos apontados à “cidade-esponja” é a possível falência do conceito quando há cheias ribeirinhas, cujo problema nasce a montante. Aqui, o arquitecto fala num problema de planeamento regional, como foi o caso recente do Brasil. Entre Abril e Maio, no estado do Rio Grande do Sul, chuvas fortes e prolongadas provocaram inundações e mais de 170 mortos.

“O problema é que cortámos as florestas a montante, esses terrenos são agora trabalhados por agricultura mecanizada, com monoculturas, sem lagos, sem sítios onde armazenar água, sem zonas húmidas”, analisa. “Temos de pensar ao nível da bacia hidrográfica, de tentar resolver os problemas a montante, de trabalhar com os afluentes e de criar um sistema esponja”, comenta.

E isso terá alguma eficácia em casos de volumes recorde de precipitação? Kongjian Yu acredita que sim, criando redes de lagos, de poços, de intervenção na paisagem. “É uma questão de um bom desenho”, garante.

E o bom desenho não pode passar pelas mesmas construções em betão que só adiam o problema, considera. “Estamos dispostos a continuar a investir, nunca resolvendo, ou vamos introduzir soluções de base natural?” Para o arquitecto paisagista, não há alternativa.