Tudo pelo lore. Nada contra o lore

Quase sempre, o passado dos pais é digno de filme, de tão improvável e maravilhoso que é. O passado recente e o presente dos filhos são drasticamente incaracterísticos e desinteressantes.

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Megafone P3: Tudo pelo lore, nada contra o lore Rachel Claire/ Pexels
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No dia 10 de janeiro de 1969, George Harrison escreveu no seu diário: “Got up/ Went to Twickenham/ Rehearsed until lunch time/ Left The Beatles” (Levantei-me/ Fui a Twickenham/ Ensaiei até à hora do almoço / Deixei os Beatles) . Nem todos se podem dar ao luxo de escrever uma coisa destas. A vida do artista inglês é (foi) mais espetacular do que as dos comuns. De qualquer das formas, os diários dos outros são sempre mais interessantes do que os nossos, assim como as vidas.

Como estamos tão habituados à nossa vida, e porque fomos nós — e só nós — a viver, em primeira mão, o nosso passado, o que vivemos surpreende-nos pouco. Boa ou má, é a nossa vida. Estamos tão habituados a ela. Por isso, costumamos relativizá-la, como se fosse uma coisa menor.

As vidas dos outros dão-nos que pensar, sobretudo as dos que vieram diretamente antes de nós. Neste plano, as que mais revelam são as dos nossos pais, porque é com eles com que nos costumamos comparar, de cada vez que nos lembramos de que eles já tiveram a nossa idade. Fazemos o mesmo com outros familiares, mas, por norma, damos mais importância às experiências dos nossos pais, porque nos dizem mais, podendo, até, dizer-nos mais sobre nós.

Como têm mais anos de vida, os pais têm mais histórias de vida. É simples. E é suposto que assim seja. No entanto, a questão assume contornos complexos, que têm que ver com invejas dissimuladas. Não são condenáveis. São justas e naturais, próprias de quem imagina a vida dos seus pais antes do seu nascimento — ou, na prática, antes de o seu pai ter conhecido a sua mãe e vice-versa.

Os ingleses, nomeadamente os mais novos (os eminentemente digitais), é que a sabem toda: referem-se a lore (dad lore ou mum lore) para designar o conjunto de experiências que os seus pais viveram no passado — nomeadamente na juventude —, e que moldaram as suas vidas e as vidas dos filhos, que, à data, constituíam planos impossíveis. A nossa língua não nos oferece um termo tão redondo; é pena.

No TikTok (hoje em dia, é tudo no TikTok), surgem milhares de vídeos sobre o lore dos pais — e todos respeitam a mesma premissa: a vida dos pais é sempre mais interessante do que a vida dos filhos, que costuma ser muito comum e muito usual — semelhante a tantas outras, também muito comuns e muito usuais. (Isto não quer dizer que a vida dos pais seja ou tenha sido melhor ou pior do que a vida dos filhos, claro.)

Quase sempre, o passado dos pais é digno de filme, de tão improvável e maravilhoso que é. Têm histórias que não acabam. O passado recente e o presente dos filhos são drasticamente incaracterísticos e desinteressantes. Por isso, tentam espevitar os seus dias, alinhando em programas mirabolantes, na esperança de construir memórias dignas de registo e que, no futuro, possam (também) impressionar os seus filhos. Raramente, obtêm resultados, porque é praticamente impossível forçar as melhores histórias, já que elas acontecem de um modo bastante simples, sem que os intervenientes se apercebam da sua ocorrência. Sempre é verdade quando se diz que a vida é o que acontece quando estamos ocupados a fazer outros planos.

Ao fim do dia, o lore dos pais é sempre superior ao dos filhos. É contranatura assumir uma posição diferente, o que não significa que as pessoas não possam participar em investidas memoráveis: esta é a melhor estratégia para uma vida bem vivida. No entanto, é bom que percebamos que é o tempo — e a sua passagem — que abrilhanta as histórias do passado.

Os mais novos pensam mais naquilo que ainda não viveram do que na sua vida propriamente dita. Não somos parvos, mas parecemos. Realmente, pode ser que a juventude esteja a ser desperdiçada em nós. Enfim, não temos mais do que vontade de viver. E, de facto, viver é a única coisa que podemos fazer, enquanto vamos ouvindo, sorrateiramente ou não, as improváveis e quase sempre secretas histórias dos nossos pais, que muito viveram, e que já foram como nós: miúdos à procura de qualquer coisa memorável.

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