Uma Avenida da Boavista sem condições para bicicletas? “É um tiro no pé”
Obras de instalação do canal de metrobus estão a levar à transformação de fachada a fachada da grande artéria portuense. Quem a usa para pedalar perde espaço e receia pela segurança.
É uma questão de espaço. Desde que começaram as obras do metrobus na Avenida da Boavista, o percurso de Sandra Alves passou a sofrer um desvio pela Rua de Sidónio Pais. “Conduzo uma bicicleta de carga para transportar os meus dois filhos. Agora, os carros vão muito mais juntos e eu fico sem espaço para passar”, descreve a funcionária administrativa de 50 anos.
Apesar dos vários problemas de desenho, a avenida tinha uma ciclovia entre a Casa da Música e o Estádio do Bessa, que desapareceu com a instalação do canal de metrobus, cuja primeira fase das obras deverá ficar concluída até este Verão.
Para quem pedala, esse desaparecimento contribui para o aumento de sensação de insegurança na estrada, conta Sandra, que há cerca de três anos trocou o segundo carro da família por uma bicicleta de carga, com a qual finta mais facilmente as filas de trânsito na hora de ponta.
No entanto, o veículo que utiliza para ir para o trabalho ou distribuir os filhos por escola e tempos livres também deixou de “ser eficiente” na Boavista: é mais largo do que uma bicicleta convencional e acaba por ficar também presa entre automóveis. Já lhe aconteceu num dia de chuva torrencial, diz, e tem pouca vontade de repetir a experiência.
Mesmo quando as obras terminarem, a margem para quem pedala mantém-se reduzida. Depois de uma remodelação da avenida que vai de fachada a fachada, na hora de redistribuir espaço público, a decisão da Câmara Municipal do Porto (CMP) foi manter duas vias para circulação automóvel em cada sentido, retirando canal a quem opta por andar de bicicleta ou trotineta.
Estes meios são forçados a coexistir com carros numa avenida cujo desenho – 5,5 quilómetros em linha recta – é um convite à aceleração. A sinistralidade reflecte as condições de segurança da Avenida da Boavista: só nos últimos quatro anos, há registo de 118 acidentes que provocaram 139 vítimas, mostram dados que a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária enviou à agência Lusa. Entre elas, há duas mortes.
Velocidade e ultrapassagens
Na experiência de Adalberto Teixeira, a velocidade é mesmo o principal problema. O programador informático costuma passar diariamente pela Boavista, em direcção a Matosinhos, e é um experiente utilizador de bicicleta na cidade do Porto. Com a perda de espaço na avenida, narra vários episódios de ultrapassagens rasantes (que não são novidade).
Por outro lado, nota também que, com as obras, a degradação do piso e a mudança diária de trajectos, “os automóveis estão obrigados a andar mais devagar”. Essas condicionantes terminarão com os trabalhos, mas, ao PÚBLICO, o Município do Porto diz acreditar que a redução da largura das quatro vias asfaltadas vai contribuir para acalmar o tráfego.
Questionada por medidas para reduzir a velocidade na Boavista, a autarquia acena com a semaforização dos cruzamentos e de todas as travessias de peões (algo que já existe) e com “gincanas “nas zonas de paragem do metrobus” (pois a inserção das paragens no meio da avenida a isso obriga). A Metro do Porto, que é a dona de obra, refere-se a estes contornos como “curvas muito suaves, mas que levam a uma redução da velocidade média de circulação”.
Mas a primeira fase dos trabalhos está perto do fim e já poucos esperam alterações substanciais ao projecto. Ainda assim, há várias medidas que podem ser implementadas para reduzir velocidades, aponta a especialista em mobilidade, Paula Teles: pintar bicicletas pelo meio das faixas de rodagem para reforçar ao condutor que está num ambiente que não é só dele; colocar marcadores de pavimento para que os condutores reduzam a velocidade; colocar pilaretes ou estrangular as vias com objectos, como floreiras.
A esta lista, Paula Teles acrescenta a necessidade dar segurança aos peões e aos atravessamentos, até porque as paragens do metrobus ficarão no meio da avenida. “Mesmo estando mais apertada, a faixa de rodagem continua a ser uma recta muito, muito comprida”, explica a engenheira civil, que tem um gabinete de planeamento de mobilidade nas imediações da Boavista. “E o grande problema da segurança numa avenida desta natureza é a velocidade”, avisa.
Sobre possíveis medidas de protecção dos utilizadores mais vulneráveis da estrada, a autarquia presidida por Rui Moreira responde apenas que vai “avaliar a possibilidade” de, nas intercepções da Boavista, pintar um rectângulo no chão a sinalizar que as bicicletas podem esperar à frente dos carros. São as designadas “bike boxes”.
Os manuais e a prática
O dirigente da Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta – MUBi, Duarte Brandão, já dá como adquirido que não vai existir na Boavista “o que, de acordo com os manuais, seria boa infra-estrutura” para pedalar. Lamenta que não haja “abertura política nem técnica para o fazer”, apesar de o exemplo dado pela própria Metro do Porto mostrar que não tem de ser assim.
Em Janeiro, a empresa pública promoveu uma visita de imprensa a Nantes, que tem duas linhas de metrobus em operação, para mostrar o efeito que este transporte público poderá ter no Porto.
Quando instalou os seus canais dedicados aos autocarros, a cidade francesa reservou apenas uma via para carros em cada sentido e acautelou espaço para quem anda de bicicleta. Ainda assim, aos jornalistas, o presidente da Metro do Porto disse então que a discussão sobre uma ciclovia na Boavista era “completamente extemporânea”.
Duarte Brandão nota que, por exemplo, no caso da Linha Rubi, já foi pensada infra-estrutura para bicicletas, como a nova ponte sobre o Douro e na ligação à rotunda Edgar Cardoso. “A mesma Metro do Porto que diz que o uso da bicicleta é extemporâneo na Boavista tem estações a dizer ‘venham de bicicleta’”, aponta, numa referência à campanha Bicla&Metro, lançada em Novembro de 2021.
Mais perto do que Nantes, há outra comparação possível. A Avenida da República, em Vila Nova de Gaia, acomoda o canal do metro à superfície, no meio de duas vias para carros em cada sentido.
Tem um perfil semelhante ao que se começa a desenhar na Boavista, mas, já neste mês, a Câmara Municipal de Gaia deu início aos trabalhos de construção de uma ciclovia segregada. O objectivo é dar mais segurança a meios de mobilidade que já por ali circularam, explicava o autarca Eduardo Vítor Rodrigues, à Lusa, reduzindo potenciais conflitos com automóveis, mas também com peões.
Nalguns pontos da avenida é retirada uma via para carros, embora o responsável considere que os automobilistas não vão sentir muito essa alteração: na prática, o estacionamento abusivo já ocupava quase em permanência uma via, o que impedia a circulação.
Nas partes já asfaltadas da Boavista, nalguns pontos das secções que já reabriram ao trânsito depois da intervenção, começa a verificar-se um cenário idêntico ao que Gaia tinha até hoje: via ocupada por carros estacionados em segunda fila e por veículos de cargas e descargas.
Descarbonização?
A Metro do Porto fez as contas e tem estimado que o metrobus conseguirá conquistar quatro milhões de clientes ano ao automóvel, o que levará à “redução e acalmia de tráfego rodoviário” na avenida e sua vizinhança.
Para Paula Teles, a questão não é tão linear. “Quando se integra um BRT (bus rapid transit) no meio de uma grande avenida como a Boavista e se mantêm as mesmas vias [para carros], a minha pergunta é se isso é realmente uma grande aposta na mobilidade sustentável”, questiona. Esta interrogação é relevante quando a obra conta com um financiamento de 66 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência para a "transição climática".
A CMP justifica a manutenção de duas vias para carros com a classificação da Boavista como “eixo urbano estruturante” em Plano Director Municipal. Mas essa classificação pode “já não fazer sentido numa nova hierarquia de planeamento da mobilidade sustentável”, diz Paula Teles, sobre o PDM que o Porto aprovou em 2021. E uma Boavista que respondesse aos “desafios do século XXI” deveria ter “uma aposta clara na descarbonização e na humanização”.
Na verdade, há um troço da Boavista que terá uma ciclovia segregada, entre o Liceu Garcia de Orta e a rotunda do Castelo do Queijo. Mas apenas essa extensão “não serve a maior parte das pessoas”, avalia Sandra Alves. Em 2024, com as metas de descarbonização estabelecidas, não prever uma ciclovia na Boavista “é um tiro no pé”.
A ciclovia que existia entre a Casa da Música e o Bessa dava um sinal de intenções, mas tinha vários problemas. Era apenas tinta no pavimento, não tinha separação física dos automóveis e estava instalada junto ao estacionamento, tanto que Paula Teles foi ali derrubada pela abertura repentina da porta de um carro.
“E mesmo havendo esse percurso supostamente dedicado às bicicletas, era frequente ter automóveis estacionados, o que nos obrigava a ir para a estrada. Estávamos sempre a fazer um pouco de ziguezague", descreve Adalberto Teixeira.
A instalação de uma via segregada para bicicletas entre o Castelo do Queijo e o liceu padece do principal problema que identifica no Porto: há alguns troços de ciclovia espalhados pela cidade, mas não há uma rede propriamente dita. “Não há uma infra-estrutura ciclável”, diz, “e isso torna difícil, principalmente para pessoas mais novas, poderem deslocar-se no dia-a-dia de bicicleta”.