A verdade é o melhor remédio
Para tornar as coisas claras: nunca se leva um idoso para um lar sem lhe dar conhecimento prévio. Não se mente, não se ilude, não se engana.
A Rosalina tinha 86 anos no dia em que, acompanhada pelos dois filhos, deu entrada no lar. Nenhum deles lhe disse ao que ia e quando ela, já sentada no carro, perguntou qual o destino da viagem, responderam-lhe que era dia de consulta de cardiologia. A Rosalina não se deixou convencer. Ela bem viu quando o filho enfiou uma mala de viagem, das grandes, na bagageira do carro. E voltou a insistir. Dessa vez, nenhum dos filhos lhe respondeu. E quando chegaram ao lar, mesmo sem ver mais do que um sofá e uma máquina de café, a boca da Rosalina transformou-se numa linha tão fina que era quase inexistente.
— D. Rosalina, boa tarde. O meu nome é Carmen e sou a enfermeira aqui do lar. Está disponível para me responder a meia dúzia de perguntas? —, questionei.
E foi assim que começou a confusão. A Rosalina avisou furiosa que fugia se lá a deixassem e que, como tal, o melhor era os filhos tirarem “o cavalinho da chuva”. Os filhos gaguejavam na tentativa de argumentar. E eu só pensava porque é que as famílias insistem nestas jogadas clandestinas que nunca dão bom resultado.
Para tornar as coisas claras: nunca se leva um idoso para um lar sem lhe dar conhecimento prévio. Não se mente, não se ilude, não se engana. Não se promete uma consulta para depois acabar num lar, de sorriso amarelo, a dizer “pronto, agora a mãe vai ficar a viver aqui”. Como se entrar num lar fosse um pormenor ou uma coisinha de somenos importância.
Sempre que possível, a decisão de entrar num lar deve partir da própria pessoa. Acontece que, numa enorme quantidade de casos, particularmente nos de demência ou outras alterações cognitivas, a decisão é tomada pelos filhos ou cuidadores. E deixem-me dizer-vos que, num contexto normal, esta decisão tende a ser dolorosa e repleta de sentimentos de culpa.
Mas ainda assim, é importante que o idoso seja informado sobre aquilo que lhe diz respeito e que, dentro das suas capacidades de foco e compreensão, se procure explicar-lhe as razões que motivaram a opção pelo lar.
Ultimamente temos falado muito de ageing in place e, atendendo ao envelhecimento populacional, esse terá mesmo de ser o rumo. Mas para isso é urgente redesenhar as equipas de apoio domiciliário. Entregar comida, cuidar da roupa e higiene da pessoa e da casa é apenas uma ínfima parte daquilo que os idosos necessitam. Fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, enfermeiros, gerontologistas… Todos estes grupos profissionais deveriam integrar as equipas. Melhorar e tornar mais amplo e eficaz o apoio domiciliário tem de ser uma prioridade. Acontece que, em muitos casos, por mais completa que esta resposta seja, vai chegar um ponto em que será necessário avançar um passo. E esse passo é difícil a todos os níveis, mas jamais poderá ser ocultado. Muito menos da pessoa que, de facto, o terá de dar.
"E o que faço se, ao informar o meu familiar idoso, ele disser que não quer ir?", perguntam-me. Aí, lamento informar, começa um complexo desafio de paciência. Mas importa sempre explicar as causas da decisão tomada e as consequências que podem advir da não-institucionalização. Marcar uma visita ao futuro lar também pode ser uma boa estratégia. E depois é conversar e estar atento, mas nunca ocultar ou mentir.
A Rosalina não ficou connosco no lar naquele dia. Expliquei aos filhos que não tínhamos condições para a manter ali contra a própria vontade e pedi-lhes que a levassem ao neurologista que a seguia habitualmente para optimização da medicação. Garanti-lhes que as nossas portas estariam abertas para que voltassem posteriormente, sem enganos ou omissões.
E dois meses depois da primeira tentativa, ela voltou. Não vinha contente, mas vinha calma. Quando colocou os pés no hall de entrada sabia exactamente onde estava e ao que vinha. Porque a verdade, mesmo que mais difícil ao início, acaba sempre por facilitar depois.
Hoje, a Rosalina está integrada e, acho que posso dizê-lo, feliz. Os filhos são visita constante e quase todos os domingos a levam para almoçar em casa, em família. Acho que o sentimento de culpa lhes passou. Tudo está como devia estar.
A verdade foi o melhor remédio.