Invasão da Ucrânia pela Rússia perturbou migração das águias-gritadeiras

Ave de rapina de espécie vulnerável obrigada a fazer um desvio de quase 100 quilómetros na sua rota e sem paragens para evitar zonas de conflito activo, detectou estudo feito no início da guerra.

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Entre a Ucrânia e a Rússia, vivem cerca de 150 casais reprodutores de águias-gritadeiras Hari K Patibanda
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A invasão russa da Ucrânia pela Rússia, em 2022, fez com que as águias-gritadeiras (Clanga clanga), aves de rapina classificadas como espécie vulnerável, alterassem a sua rota de migração anual, que as traz do Médio Oriente e de África para a Polésia, uma zona húmida na Bielorrússia. O tempo de viagem aumentou, e o número de paragens de descanso que estas águias costumavam fazer no território ucraniano noutros anos diminuíram – ou então deixaram de as fazer, pura e simplesmente, o que tem custos para a capacidade de se reproduzirem.

A 3 de Março de 2022, menos de dez dias depois de começarem os ataques aéreos e as tropas russas terem atravessado a fronteira da Ucrânia, na madrugada de 24 de Fevereiro de 2022, estavam a chegar à Ucrânia as primeiras das 19 águias rastreadas com dispositivos GPS e seguidas por cientistas da Universidade de East Anglia (Reino Unido), a Sociedade Britânica de Ornitologia e a Universidade de Ciências da Vida da Estónia. Nessa altura, o conflito tinha-se alargado a muitas das principais cidades ucranianas.

“Não estávamos à espera de acompanhar a migração destas aves por uma zona de conflito activa”, comentou o primeiro autor do trabalho, Charles Russel, da Universidade de East Anglia, citado num comunicado de imprensa.

A guerra marca espécies migratórias

As águias-gritadeiras são aves de rapina com 65 a 72 centímetros de comprimento, e uma envergadura de asas de 155-180 centímetros. Passam o Inverno em África e no Médio Oriente e reproduzem-se no Nordeste da Europa em florestas densas, próximo de rios ou lagos. São classificadas como uma espécie vulnerável na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza.

Na Polésia, uma região que abarca o Norte da Ucrânia e o Sul da Bielorrússia, existem cerca de 150 casais de águias-gritadeiras que se reproduzem – lentamente, uma única cria por ano, mas com uma taxa de sucesso reprodutivo relativamente baixa (cerca de 60%). Ali vive, durante o Verão, cerca de 15% da população europeia desta espécie. Em Portugal é extremamente raro serem avistadas.

Os cientistas usaram dados do projecto Armed Conflict Location and Event Data (ACLED), de uma organização governamental, cruzando-os com os dados de meteorologia e da distância percorrida pelas aves. Desta forma, conseguiram perceber como a exposição ao conflito fazia com que as aves alterassem o seu comportamento durante a travessia da Ucrânia, nos meses de Março e Abril de 2022, em comparação com anos anteriores.

Este estudo mostra, “pela primeira vez, o impacto de um conflito activo na migração de uma espécie de ave ameaçada”, escrevem os investigadores no artigo publicado nesta segunda-feira na revista Current Biology.

A investigação disponível até agora sobre o impacto da actividade militar na vida selvagem, explica a equipa, tem-se limitado ao estudo do que se passa com aves residentes em zonas de treino militar (por exemplo, campos de tiro).

“A guerra na Ucrânia teve um impacto devastador nas pessoas e no ambiente. Os nossos resultados permitem abrir uma rara janela para ver como os conflitos humanos afectam os animais selvagens, e permitem melhorar a nossa compreensão dos potenciais impactos destes ou outras actividades humanas que são difíceis de prever ou monitorizar”, afirmou Charles Russell.

É o som, a luz, a libertação de produtos químicos, o trânsito de pessoas e veículos militares que mais afecta as águias-gritadeiras? Não é claro quais os estímulos a que estas aves respondem de forma mais negativa, dizem os cientistas. No entanto, muitos outros estudos anteriores já referiam ter testemunhado mudanças de comportamento nos animais selvagens quando expostos a perturbações imprevisíveis, como o lançamento de fogo-de-artifício. Os seus efeitos são mais significativos em habitats abertos – como as zonas húmidas da Bielorrússia e da Ucrânia usadas pelas águias-gritadeiras.

Não faltam elementos perturbadores num conflito como o que decorre no território da Ucrânia: fogo de artilharia e outras armas, voo de aviões, e deslocação de tropas e refugiados – o conflito obrigou dez milhões de pessoas a fugir de casa.

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Este estudo mostra, pela primeira vez, o impacto de um conflito activo na migração de uma espécie de ave ameaçada como as águias-gritadeiras, dizem os investigadores Hari K. Patibanda

Sem parar na Ucrânia

O que os dados mostram é que, em média, as 19 aves acompanhadas pelos cientistas fizeram desvios de cerca de 85km das suas rotas habituais para evitar locais de combate activo. Por isso, a sua viagem de migração tornou-se mais longa: 246 horas, em vez das 193 horas que as fêmeas costumavam demorar, e 181 horas, em vez das 125 habituais para os machos, que também viajavam a uma velocidade menor do que em anos anteriores.

Além disso, no período 2018-2021, 18 em cada 20 aves paravam regularmente em zonas de descanso e alimentação bem conhecidas. Mas em 2022, só seis das 19 águias-gritadeiras seguidas usaram estes pontos de paragem. E alguns destes pontos onde as aves bebem, comem e descansam não foram usados de todo.

A Zona de Exclusão de Tchernobil, que está num processo de restauro do ecossistema, depois do acidente nuclear de 1986, tornou-se um importante habitat das águias-gritadeiras. Mas também as aves que aqui nidificam ficaram expostas aos efeitos do aumento de actividades militares, provenientes da parte bielorrussa da fronteira, salientam os investigadores.

“Os nossos resultados mostram os potenciais amplos impactos dos conflitos na vida selvagem”, escrevem os cientistas.

O aumento do tempo de viagem, e a redução das paragens para descansar e comer têm custos energéticos negativos para as aves. Embora todas as 19 aves seguidas tenham sobrevivido, os investigadores supõem que a exposição ao conflito na Ucrânia pode continuar a afectá-los durante o período de acasalamento e até para além disso.

“A dimensão do efeito no comportamento migratório foi muito grande, suficientemente substancial para ser detectada numa amostra relativamente pequena”, sublinhou Adham Ashton-Butt, outro membro da equipa, da Sociedade Britânica de Ornitologia, citado noutro comunicado de imprensa, desta vez da Current Biology. “Estas perturbações podem ter impactos significativos no comportamento, e potencialmente na capacidade de as águias se reproduzirem”, salienta.

Os resultados são importantes para tentar compreender como os conflitos afectam a natureza, algo difícil de quantificar, mas urgente. “As espécies migratórias podem ser expostas aos efeitos de um maior número de conflitos humanos do que as espécies sedentárias, porque se deslocam ao longo do ano, e há vários conflitos em várias rotas de migração internacionais importantes”, destacam os investigadores.

Muitos dos locais com maior diversidade biológica do planeta ficam em países politicamente instáveis. Entre 1950 e 2000, houve conflitos significativos em dois terços das áreas de alta biodiversidade (conhecidas como hotspots), sublinha a equipa.

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