Não, não pode

Os cravos que comprei no 25 de Abril ainda não murcharam. Mas o acto revolucionário dos dias de hoje parece ser a institucionalidade.

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Megafone P3 Daniel Rocha
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Pôs a mão no peito, como se de um enfarte se tratasse. Alexandra Leitão, deputada do Partido Socialista, no qual nunca votei nem pretendo votar alguma vez na vida, reagia assim, estupefacta, à contundente resposta do Presidente da Assembleia da República (PAR) à sua pergunta: "Se uma determinada bancada disser que uma determinada raça ou uma determinada etnia é mais burra, mais preguiçosa ou menos digna, também pode?"

"— Sra. Deputada, no meu entender, pode."

Com tão poucas palavras se esgrimiu o punhal que Alexandra Leitão sentiu no peito. Confesso que não senti nada muito diferente. Mais do que a perplexidade, a desolação de nos sabermos neste estado de coisas. Os cravos que comprei no 25 de Abril ainda não murcharam. Mas o ato revolucionário dos dias de hoje parece ser a institucionalidade. As formas de respeito, civismo, cordialidade e educação que pautaram as acções de todas as grandes figuras que nos guiaram nos primeiros anos de democracia e que, por alguma razão, deixaram de fazer sentido para uma parte de quem democraticamente nos representa. A escolha da liberdade em detrimento da libertinagem.

Não, não pode, sr. Presidente da Assembleia da República. Diz a Constituição, que nos declara iguais e livres de preconceitos e generalizações baseadas na proveniência de quem aqui nasce, vive ou trabalha. Diz o estatuto dos deputados, vinculado maternalmente a essa constituição. Diz a lei portuguesa, redigida por quem se senta nesse hemiciclo e dizem as mais elementares normas de convivência e comportamento a que estão obrigados, em particular, os titulares de cargos públicos, mas francamente, todos os que por cá temos o privilégio de viver. Até às crianças, a quem ensinamos, quando ainda estão na escola primária, que as suas liberdades (a de expressão, também), terminam onde começam as dos outros.

Se isto se dissesse no parlamento francês ou espanhol em relação aos portugueses, teríamos um incidente diplomático sem precedentes. Rio amargamente ao imaginar as exigências que a bancada que hoje fez generalizações sobre um povo inteiro faria amanhã para reparação do ultraje. Uma incoerência difícil de justificar em democracia.

A democracia que, apesar de frágil, continua a ser a tradução prática mais perfeita da dignidade colectiva de um país. Saibamos estar à altura dela, quando nos for dada essa possibilidade. E quando não, resta-nos a dignidade individual. A da mão no peito de Alexandra Leitão, emoldurando a única resposta possível:

— No meu entender, não.

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