Em Portugal, a publicação da Lei n. 9/2010, a 31 de maio, veio permitir o casamento civil de pessoas do mesmo sexo. Seis anos mais tarde, a 29 de fevereiro de 2016, a Lei n. 2/2016 é publicada em Diário da República, eliminando as discriminações jurídicas familiares em torno da adoção por casais do mesmo sexo.
Segundo dados recentes do Instituto Nacional de Estatística, verifica-se uma tendência crescente relativamente ao número de casamentos entre pessoas do mesmo sexo no período entre 2011 e 2022. Também, a 1 de Março de 2024, é tornado público pelo Instituto de Segurança Social o número total de crianças adotadas nos últimos oito anos (2016-2023): há 55 crianças adotadas por 40 casais do mesmo sexo em Portugal, 32 destas adoções decorridas entre 2020 e 2023.
Ainda que ao de leve, os indicadores permitem refletir sobre as transformações que Portugal assistiu em torno das práticas e ideais de família e sexualidade nas últimas décadas. Experienciamos uma revolução a partir da democratização da vida íntima com implicações nas relações privadas e na vida pública. Os indivíduos interrogam-se como querem viver, como querem educar os seus filhos, como querem lidar com o seu corpo, como querem relacionar-se e construir-se.
Graças à pressão política de movimentos feministas e LGBTQIA+, junto do apoio de partidos de esquerda, foram sendo atualizados direitos individuais decisivos para o reconhecimento e pertença social de pessoas que até então viviam à margem da “norma” – pessoas lésbicas, gay, bissexuais, trans –, entre os quais o reconhecimento do direito à constituição de famílias com opções de vida íntima fora da conceção do padrão tradicional heteronormativo.
No entanto, enquanto os avanços da lei possibilitam o reconhecimento de novas liberdades e direitos que rompem com visões tradicionais e hegemónicas em torno da identidade, do género e da sexualidade, percebe-se uma continuidade de reações conservadoras, revanchistas e reacionárias à atualização e autodefinição dos direitos das mulheres, pessoas e famílias LGBTQIA+. Exemplo disso é o programa ideológico da direita conservadora e da extrema-direita portuguesa que, numa tentativa de regressão de direitos, se posiciona contra o aborto, a eutanásia, os direitos LGBTQIA+, a “ideologia de género”, em defesa dos valores da “família tradicional” baseada na tradição judaico-cristã.
Exemplo evidente é aquele trazido pelo Movimento Ação Ética, no livro Identidade e Família. Uma obra que trouxe para o debate público argumentos como “o ataque à família tradicional”; “a propagação anestesiante da cultura da morte”; ou ainda a alegada “ideologia de género” e o “totalitarismo democrático” que atentam os direitos fundamentais da família “em nome de uma suposta igualdade e não discriminação”, como escreveu Bagão Félix.
Argumentos envoltos de um catecismo cristão que deslegitimam não só a união e adoção entre pessoas do mesmo sexo, a autodeterminação de pessoas LGBTQIA+, considerando-a como desvio, patologia ou perversão, como também o direito à procriação medicamente assistida, o aborto ou a eutanásia, direitos que, segundo os autores, violam a proteção do modelo tradicional de família entendido como “união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher com vista a assegurar a sobrevivência e renovação da espécie”.
Neste livro, que se diz querer ser contra os “adversários da família”, encontramos na direita ultraconservadora portuguesa o ideal de família composta por um tipo particular de casal, heterossexual, casado, fértil e católico. O reforço da ligação biológica, binária e cisnormativa para o reconhecimento dos direitos parentais e familiares continua a ser a preterida pela direita conservadora, corroborando a "aberração" das famílias LGBTQIA+.
Percebemos que embora a possibilidade de reconhecimento de novas formas de família e parentesco, a desconstrução do ideal normativo do casal heterossexual e dos estereótipos de género constitui um desafio importante enquanto elemento central da igualdade. Perante a ansiedade social criada por revanchismos sexistas e homofóbicos, empenhados em condicionar avanços relativos aos direitos das mulheres e LGBTQIA+, mostra ser necessário resistir a discursos de ódio que perpetuam restrições a formas de vida familiar que transcendem as relações de sangue e a organização heteronormativa de parentesco. Afinal, o que faz a família é o amor.