Herança Social – do século XVIII para o Estado Social do século XXI

A ideia de uma “Herança Social” não énova. Remonta, pelo menos, a 1795, ao Agrarian Justice, escrito por Thomas Paine.

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A introdução de um “imposto sucessório para grandes heranças e grandes doações, que venha a constituir uma 'herança social' – transferência direta atribuída quando atingida a maioridade” era proposta no programa do Livre para as eleições legislativas de 10 de Março.

A ideia de uma “Herança Social” não é, contudo, nova. Remonta, pelo menos, a 1795, ao Agrarian Justice, escrito por Thomas Paine.

Para Paine, a terra e os recursos naturais, previamente a todo e qualquer processo de aquisição, constituem, por direito, uma herança comum, pertença de todos, pessoas livres e iguais. Assim, propõe uma via intermédia entre a coletivização e a propriedade privada tout court. Defende que a propriedade privada da terra é legítima, desde que o seu proprietário compense todos os outros, por estes ficarem, em consequência dessa apropriação, excluídos do acesso e do usufruto do lote de terra em questão. Essa compensação, na proposta de Paine, teria a forma de uma taxa sobre a terra, paga pelos seus proprietários, que reverteria para o financiamento de um dividendo universal destinado a todos os outros cidadãos quando estes atingissem a idade adulta (21 anos).

Dois séculos depois, em 1999, Bruce Ackerman e Anne Alstott, em The Stakeholder Society, adotam o espírito da proposta de Paine, adaptando-a para os desafios da sociedade industrializada e rica dos EUA do século XX. Para os autores, o ideal liberal da igualdade de oportunidades encontra a lotaria social como obstáculo. Por outras palavras, o contexto socioecónomico, ou seja, o berço, em que cada um nasce, fator sobre o qual não é responsável (logo, não tem culpa, nem mérito sobre isso), influencia em grande medida os seus prospetos de vida. De modo a mitigar essas assimetrias derivadas da lotaria social, propõem que todos os cidadãos (neste caso, dos EUA) possam usufruir, a partir dos 21 anos, de uma quantia, paga uma única vez, de 80 mil dólares. Este dividendo seria financiado por uma taxa de 2% aplicada sobre toda a riqueza nacional.

O diagnóstico de Ackerman e Alstott viria a ser corroborado 15 anos depois, em 2014, por Thomas Piketty. No seu Capital no século XXI, o economista francês procura demonstrar que nas sociedades ricas ocidentais o peso das grandes heranças domina completamente o do rendimento do trabalho, o que ajuda explicar o porquê de essas sociedades serem cada vez mais desigualitárias. Como parte da solução para o problema, Piketty propõe uma herança social, resultado de um imposto progressivo sobre o rendimento, o capital e das grandes sucessões (com maior ênfase no Capital e Ideologia, de 2019).

O diagnóstico também se aplica a Portugal, onde se estima que as famílias pobres demorem em média cinco gerações alcançar a classe média. Assim, a proposta do Livre seguiu a mesma linha de raciocínio – embora mais modesta: Rui Tavares referiu-se a um depósito de 5 mil euros por bebé, ao qual este poderia ter acesso no começo da vida adulta.

Não é surpreendente que os partidos de direita não gostem deste tipo de medida. Não obstante, também é possível criticá-la pela esquerda. Há várias objeções: 1) a lotaria social não diz respeito apenas à desigualdade de riqueza e rendimento, mas também de capital educativo e social, com os quais se torna mais fácil tirar maior rentabilidade da aplicação da “herança social”, pelo que os mais ricos continuarão em vantagem; 2) sendo uma oportunidade única, um investimento falhado será irreversível, fazendo recair o estigma da “falha” sobre o beneficiário da herança; 3) há o risco de criar uma sociedade de investidores, agudizando a divisão entre vencedores e vencidos: os mais pobres terão apenas mais fichas para jogar um jogo perverso.

Por estas e outras razões, algumas pessoas podem estar mais inclinadas para a ideia de um Rendimento Básico Incondicional (RBI), do que para uma Herança Social. Parafraseando Philippe Van Parijs, medidas como a última ajudam a igualizar as oportunidades que as pessoas têm no início da vida adulta, ao passo que um RBI promove segurança económica para toda a vida.

Não negligenciando estes riscos, penso que ganharíamos com a implementação da proposta. Por um lado, muitos dos problemas que um número significativo de pessoas enfrenta no início da vida adulta seriam evitáveis, ou pelo menos mitigáveis, com uma pequena almofada financeira: estariam menos propensas à armadilha da precaridade, de terem de escolher entre o primeiro emprego que aparecer, independentemente das condições, ou a privação material; estariam menos suscetíveis aos erros de planeamento, provocados, esses sim, pelo estado de permanente ansiedade e pânico, associados à insegurança económica; em muitos casos, conseguiriam porventura alcançar o pequeno passo de dar início ao projeto com que sempre sonharam.

Por outro lado, na sua implementação imediata, afigura-se mais exequível do que o RBI, por três motivos (ainda que não partilhe todas as potenciais virtudes do RBI). Em primeiro lugar, o custo. Representará, à partida, uma despesa pública menor do que seria necessária para financiar um RBI. Em segundo, evita objeções alusivas à reciprocidade. Resulta de uma taxa exclusivamente sobre heranças. Isto é, meios para os quais os descendentes beneficiários em nada contribuíram. Por fim, deixa menos dúvidas em termos de justiça na distribuição de benefícios e encargos. A taxa incide apenas, progressivamente, sobre grandes heranças. Isto é, sobre dinheiro supérfluo para os mais ricos, mas que afetaria positivamente a vida dos menos favorecidos.

Vale a pena tentar!

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