Era uma vez um pai

De cada vez que o meu pai escuta a banda-sonora de Era uma vez na América, volta a 1984. Ele não mo diz, mas eu sei e sinto-o, porque os filhos também conhecem os pais.

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Megafone P3: Era uma vez um pai Jonas Leupe/ Unsplash
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Ao entrar em casa, dei com o meu pai sentado no chão da sala, junto ao seu sistema de som, empilhando e seleccionando discos, novos e velhos (mais velhos do que novos). Em 2024, o meu pai é vintage. Não confia nos serviços de streaming, nem regressou à loucura do vinil: não larga os seus CD por nada.

Entrei à pressa, mas pude perceber que, entre arrumações e novas disposições, o meu pai escutava a banda-sonora do filme Era uma vez na América, assinada por Ennio Morricone. Entrei em casa a sorrir, claro. Não é uma cena inédita; o meu pai costuma ouvir este disco. São várias as vezes em que chego a casa e noto que, mentalmente, o meu pai está muito longe, em Manhattan. Fico sem perceber se prefere a música à história, mas acredito que nem ele sabe, nem tem de saber. Apenas sei que, de cada vez que falamos sobre o filme, o meu pai, depois de largar um grande filme, como se se tratasse de uma deixa de guião, fala-me da banda sonora e discutimo-la. Chegamos sempre à mesma conclusão: é esplêndida.

A música é a coisa mais parecida com máquinas de viajar no tempo que temos. Quando escutamos um determinado álbum ou música do passado, regressamos ao período que desejamos. Disseram-mo, e, desde cedo, pude confirmá-lo: a música é mais forte do que o espaço e do que o tempo  — mas, feliz ou infelizmente, mais fraca do que a vida. De cada vez que o meu pai escuta a banda sonora de Era uma vez na América, volta a 1984. Ele não mo diz, mas eu sei e sinto-o, porque os filhos também conhecem os pais. Os filhos e os pais conhecem-se no mesmo momento. Então, a sua mulher, minha mãe, nem uma miragem era, e o meu irmão e eu éramos realmente uma impossibilidade. Em 1984, só existia o meu pai, que ainda não o era, e a obra-prima forjada por Sergio Leone e Ennio Morricone estava pintada de fresco, pronta a ser vista e escutada, experimentada.

Quarenta anos depois, na vida do meu pai, existem mais coisas, elementos e pessoas, mas as suas memórias permanecem e reproduzem-se de cada vez que discute com os seus filhos os grandes filmes e músicas da sua juventude e centenas de outros temas, igualmente importantes, igualmente desarrumados, porque tirados de um passado que ficou no passado, mas também que o acompanhou, e que seguirá o caminho dos seus filhos  —  porque os filhos não são mais do que belas somas de memórias; são a consequência das memórias dos seus pais e das suas próprias memórias, necessariamente menos brilhantes e espectaculares do que as deles, que vieram primeiro, e que (já repararam?) ensinam aos filhos como viver.

Apenas por vezes temos noção de que criámos uma memória num tempo presente  —  no momento em que uma acção, que até pode ser supérflua ou rotineira, se desenrola, como chegar a casa, durante uma manhã de Fevereiro de 2024. Não é frequente, e é por isso que é tão marcante. De memórias assim não nos esquecemos. De cada vez que o meu pai escuta a banda sonora de Era uma vez na América, volta a 1984. Nota-se. De cada vez que eu escuto a banda sonora de Era uma vez na América, volto a casa, e penso no meu pai  — mas naquele nunca conheci, porque, em 1984, estava longe de existir. E ainda bem.

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