Um café ao balcão

Estes cafés pertencem-nos, porque são uma criação nossa. Contudo, neste mundo global, nada é verdadeiramente nosso, porque todas as experiências são partilhadas e partilháveis.

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Megafone P3: Um café ao balcão Nuno Ferreira Monteiro
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Durante décadas, a cultura popular portuguesa soube defender-se de ataques exteriores, mantendo-se única. Partilhava-se a ideia de que as nossas vivências populares, bastante comuns e diárias, estariam protegidas, a salvo de pressões externas, executadas por populações estrangeiras, residentes em Portugal ou não, que querem fazer da nossa cultura a sua, porque se encontram, permanentemente ou temporariamente, no país.

Hoje, estamos expostos às vontades dos influencers que, feitos soldados de guerrilha, se escondem nas selvas digitais, onde revelam o nosso modo de vida a partir de perspetivas inovadoras, sim, mas quase sempre desfasadas, porque descoladas do seu contexto original.

No Instagram, a blogger Sophia Molen partilha um reel filmado num típico café português, certamente lisboeta. Almada Negreiros avisou-nos: "Não te metas na vida alheia se não queres lá ficar". O objetivo deste texto não passa por condenar o modo de vida da neerlandesa, porque, a julgar pelo reel, até é o nosso, mas vale a pena pensar sobre a romantização da rotina portuguesa. À partida, é um acontecimento positivo, mas a população portuguesa que interagiu com o conteúdo da girl dos Países Baixos acusou-o de ser cringe. Desconfio que parte da acusação esteja relacionada com a descrição do vídeo: "I love Portuguese pastelarias".

Como não amar? Demasiadas vezes, do que uma pessoa precisa é de entrar num destes estabelecimentos e pedir um café, calmante ou energético. Com os braços apoiados naquela plataforma de vidro, reconhecemo-nos como agentes portugueses. Mesmo que peçamos apenas um café, apreciamos o conforto garantido pela cama de doces e salgados, devidamente iluminados e colocados por cima de uma fila de bebidas de garrafa ou lata. Podemos estar acompanhados ou sozinhos, mas as sinergias sonoras não nos são indiferentes: ouvimos a conversa do lado, travada entre um cliente e o dono do café; escutamos o que a televisão nos diz; e somos arrebatados pelos ruídos oriundos da máquina do café. Gostamos disto, e tomamos esta experiência como garantida, porque julgamos que nos pertence. E, por isso, julgamos estes vídeos ridículos, e rimo-nos deles, sem admitirmos a nossa hipocrisia.

Estes cafés pertencem-nos, porque são uma criação nossa. Contudo, neste mundo global, nada é verdadeiramente nosso, porque todas as experiências são partilhadas e partilháveis. Hoje em dia, são nossos e de todos os que os frequentam. Por isso, para influencers, constituem um alvo fácil, já que é simples reproduzir esta experiência e partilhá-la com o mundo: basta entrar, arranjar um espaço ao balcão, pedir um café, bebê-lo, e ir trincando um pastel de nata. Mas, o que os outros fazem cá, nós fazemos lá. Em Munique, bebemos weizenbier e comemos joelho de porco. Em Florença, bebemos vinhos produzidos na Toscana e comemos foccacia. Em Rennes, bebemos sidra e comemos croque monsieur. Acredito que, por lá, também nos ridicularizem — é justo, diga-se.

É certo que nem todas as pessoas são influencers, nem se deslocam ao estrangeiro para documentar o modo de vida das populações locais, mas o princípio é o mesmo, e mostra que, neste mundo, o diferente não tem dado conta do comum, que torna tudo tão igual e pouco surpreendente. As cidades, sobretudo as europeias, apresentam poucas diferenças, mas os mesmos negócios. As pessoas que os frequentam também são parecidas: assumem o mesmo estilo, e calçam os mesmos ténis, porque a estética — em todas as suas dimensões — nunca teve um alcance tão global, sendo também aproveitado pelas raparigas portuguesas, as ditas portuguese girls do TikTok, que também vão preparando ofensivas, simples trends, no estrangeiro.

Somos tentados a ridicularizar Sophia Molen. O que, para nós, constitui um hábito, revela-se, na sua vida, uma experiência estética, que a leva a pensar que faz parte de um filme de autor. Ela não há-de conhecer a obra de João César Monteiro, mas bem que podia ver Vai e Vem, casa de um diálogo bem esperançoso: "Aliás, não se nasce português. Fica-se português". Talvez Sophia esteja a tornar-se portuguesa, porque frequenta os nossos cafés, apreciando o conforto de um balcão frio e gorduroso. Há muitos portugueses que já desistiram destes estabelecimentos, preferindo frequentar outros, com nomes que se apoderam de outros nomes, pertencentes a capitais do norte europeu.

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