Lapa do Lobo, a fundação que criou uma aldeia cultural

A Fundação Lapa do Lobo, instituída em 2007, “ultrapassou os objectivos iniciais” e tornou-se uma âncora no desenvolvimento sociocultural dos territórios de Nelas e Carregal do Sal.

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A Fundação Lapa do Lobo deu à aldeia com que partilha o nome um centro cultural, com programação regular ao longo do ano, entre outras iniciativas em prol da comunidade. Cátia Mendonça
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Não há notícia de que por estes dias de lua prenhe o lobo da Lapa tenha aparecido a algum habitante da Lapa do Lobo. A aldeia do concelho de Nelas deve o nome a uma lenda que troca as voltas às palavras e à nossa relação com esses seres felpudos, oferecendo àquela gente um lobo protector de rebanhos, mas ganhou, já neste século, outra marca que promete perdurar na história da terra, a Fundação Lapa do Lobo, que a transformou numa aldeia cultural.

Sob a primeira lua cheia do ano, precisamente designada por “Lua do Lobo”, na localidade de ruas graníticas com menos de 700 habitantes, o rebuliço era outro, o da segunda edição de um congresso internacional sobre património megalítico. Homenageando o arqueólogo João Carlos de Senna-Martinez (1948-2022), o encontro era também motivo para o lançamento de uma obra, em dois volumes, sobre a riqueza arqueológica de Nelas e do concelho vizinho do Carregal do Sal, em cujos territórios a fundação actua.

Sem comboio, com movimento

Há mais de uma década que a aldeia deixou de estranhar este movimento de investigadores, artistas de múltiplas áreas, visitantes curiosos e outros já habituais. Se os comboios demoram a voltar a parar no apeadeiro da freguesia, demoradas que estão as obras na linha da Beira Alta, a Fundação Lapa do Lobo (FLL) tomou a si a tarefa de tornar a localidade uma paragem obrigatória, graças à programação cultural regular, aos cursos de formação e às actividades educativas que, entre outras mais, promove, e que, em 2019, levaram ali mais de 22 mil pessoas.

Na tarde de 20 de Janeiro, duas dezenas de pessoas, boa parte delas crianças, partilhava um pouco do sol de Inverno no pátio da sede da fundação, aguardando para poder entrar no Auditório Maria José Cunha e assistir à peça de teatro A Manta do José. Expondo uma relação construída ao longo de mais de uma década de convívio, a coordenadora-geral da FLL, Sónia Simão, cumprimenta calorosamente quem chega pelo nome.

Rosa Mendes veio de Canas de Senhorim com a filha e o neto, Miguel, de oito anos. No terreiro entre as duas casas reabilitadas para acolher alguns serviços da FLL e o auditório com o nome da avó do seu fundador, antiga moradora da aldeia, está também Miguel Gouveia, contista e autor do livro A Manta do José, reescrita de um conto da tradição oral judaica, com ilustrações de Raquel Catalina.

A importância dos avós

Vêm todos assistir a um espectáculo da associação cultural Monda Teatro-Música. Durante a pandemia, a actriz Tânia Cardoso procurava uma história sobre um alfaiate para contar à filha e, assim, honrar a memória do avô – que, como a personagem deste conto, passava os dias a medir, cortar e coser –, e apaixonou-se pela obra de Miguel Gouveia, na verdade, uma homenagem ao poder que as histórias têm de prolongar no tempo a memória daqueles de quem gostamos.

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A actriz Tânia Cardoso apresenta a peça de teatro 'A Manta do José', adaptada do livro homónimo de Miguel Gouveia, no auditório Maria José Cunha. Anna Costa

Devemos muito aos avós. A Lapa do Lobo, por exemplo, deve aos seus a perpetuação – no tempo e no coração da identidade da freguesia, cujo topónimo remonta pelo menos a 1275 –​ da história do lobo da Lapa. Bicho que, cruzando fronteiras entre o profano e o sagrado, se afeiçoou à padroeira do lugar, Santa Catarina.

À avó Maria José Cunha, antiga habitante da aldeia, Carlos Torres deve memórias de infância e juventude, dos Verões longe de Estarreja, onde nasceu, ou de Lisboa, onde vive, e que nunca o desligaram deste lugar onde acabou por decidir fundar a FLL. Um gesto de devolução de parte do que a vida lhe proporcionou, como explicou ao PÚBLICO.

Ocupado com outros afazeres, só por acaso não o encontramos, neste sábado de teatro infantil, na aldeia onde a sua família, que ficou com a casa da avó, explora, a título particular, uma unidade de alojamento turístico. A mulher, Maria do Carmo-Batalha, é vice-presidente da fundação e a filha de ambos, Mariana Batalha Torres, exerce funções de curadoria, pelo que são todos presença constante nas actividades que a FLL programa ao longo do ano.

Mais de 130 bolsas de estudo

A Fundação Lapa do Lobo foi criada em 2007, inicialmente com o objectivo de garantir bolsas de estudo de licenciatura, mestrado e doutoramento para jovens de Nelas e de Carregal do Sal. Sónia Simão admite que tenham sido mais de 130 as bolsas atribuídas nestes anos. Uma das primeiras, recorda Carlos Torres, foi Tânia Costa, que é hoje investigadora de pós-doutoramento, na área do cancro, em Estocolmo, no Instituto Karolinska.

O próprio responsável pela biblioteca e dinamização cultural da FLL, Rui Fonte, beneficiou desse apoio para o doutoramento, no qual se debruçou sobre o impacto da instituição na comunidade, enquanto “lugar de educação para a participação, autonomia e cooperação”. O trabalho, publicado em livro, é uma das várias edições que a fundação vem promovendo, com elevado cuidado gráfico e qualidade de impressão.

“O projecto foi-nos ultrapassando”, admite, numa conversa telefónica, o fundador e presidente da fundação. Para isso ajudou também a aquisição de duas casas onde, desde 2010, funciona a sede e vários serviços da fundação, como a biblioteca, o auditório e salas de exposições e, mais tarde, a compra de uma outra moradia que foi adaptada para acolher os cursos de formação, abrangendo áreas tão díspares como a música, em vários instrumentos, a pintura, o inglês, bordados ou ioga, entre outras.

Fundação Lapa do Lobo, em Lapa do Lobo (Nelas) Anna Costa
Fundação Lapa do Lobo, em Lapa do Lobo (Nelas) Anna Costa
Fundação Lapa do Lobo, em Lapa do Lobo (Nelas) Anna Costa
Dennis Xavier, coordenador do serviço educativo, Sónia Simão, coordenadora-geral, e Rui Fonte, responsável pela biblioteca e pela dinamização cultural da Fundação Lapa do Lobo (em Lapa do Lobo, Nelas) Anna Costa
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Fundação Lapa do Lobo, em Lapa do Lobo (Nelas) Anna Costa

O serviço de boleias pioneiro

Com bons serviços nas proximidades, em Nelas, Canas de Senhorim ou Carregal do Sal, a Lapa do Lobo está longe de ser uma aldeia em risco de despovoamento. Tem apenas um café, o minimercado fechou, mas ainda mantém a funcionar a escola do primeiro ciclo, sinal de alguma vitalidade própria, atípica num interior onde a tendência de encerramento destes estabelecimentos é avassaladora.

Contudo, a população local, envelhecida, acaba por ter de se deslocar às povoações maiores, para compras, idas ao centro de saúde, hospital ou outros serviços públicos e privados. Hábitos e necessidades de mobilidade que levaram a FLL a alargar o seu escopo de actuação e a promover um serviço de transporte. “Temos meses em que damos mais de 500 boleias”, contabiliza Sónia Simão, explicando que as sextas-feiras, por causa de uma feira semanal, e as segundas, para marcação de consultas, são os dias mais concorridos.

Carlos Torres recorda, agora com a bonomia que o tempo já permite, os problemas que enfrentaram para pôr a funcionar, há mais de uma década, um então raro serviço de transporte gratuito a pedido. Numa altura em que o Instituto de Mobilidade e Transportes não tinha ainda regulamentado este tipo de oferta, a iniciativa foi contestada por taxistas, por uma empresa de autocarros, e até a polícia lhes parou a carrinha de nove lugares, questionando se os passageiros tinham bilhete.

O tempo deu-lhes razão. Nos territórios de baixa densidade, em vários pontos do país, os municípios começam a promover esta oferta, como alternativa às dispendiosas carreiras de autocarros que, em horários muitas vezes desajustados, percorrem diariamente aldeias em busca de um ou outro cliente. Em 2019, antes de a pandemia os obrigar a parar durante vários meses dos anos de 2020 e 2021, o serviço da FLL transportou quase nove mil pessoas.

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Tal como a fundação que o ocupa, o edifício-sede entretece linhas modernas com a herança da arquitectura tradicional de Lapa do Lobo, onde o granito abunda. Anna Costa

Aldeia Cultural

Mais do que um exemplo de “O Interior Que Mexe” – frase que dá título a esta série de reportagens do PÚBLICO –, a FLL poderia ser mais bem descrita pelo que faz mover, mexer. Em 2018, ali se realizou, pela primeira vez, a iniciativa Aldeia Cultural, que agregou, num programa denso, de três dias, espectáculos de teatro, oficinas, concertos, e no qual a comunidade teve oportunidade de se envolver. Travado pela pandemia de covid-19, o festival regressou em 2022 e voltará a acontecer este ano, a 19, 20 e 21 de Julho.

O contacto entre quem chega e quem ali vive faz parte dos objectivos da FLL. E está bem patente no resultado das residências artísticas, na promoção de visitas dos alunos das escolas da região e da participação das crianças nas actividades programadas pelo serviço educativo, a Alcateia, coordenado por Dennis Xavier, ou em projectos como o documentário realizado em 2018 por Tiago Pereira, autor do portal A Música Portuguesa a Gostar dela própria.

Esta relação com os habitantes da aldeia, que Dennis Xavier integrou, como co-protagonistas, na exposição que parte do livro A Manta do José, patente na fundação, é inspiradora. Em 2014, Rui Fonte coseu, noutro belíssimo livro, O lobo da Lapa, dezenas de testemunhos sobre a vida na localidade – com destaque para a sua lenda, claro – partilhados previamente por muitos lapenses num manuscrito que correu várias casas. Uma obra indispensável para quem quiser conhecer um pouco mais da vida desta gente.

Dennis Xavier e Ana Seia de Matos conceberam a exposição em torno do livro 'A Manta do José', escrito por Miguel Gouveia (à direita). Anna Costa,Anna Costa
O livro 'A Manta do José', de Miguel Gouveia, serviu de inspiração à exposição patente na Fundação Lapa do Lobo até 20 de Abril. Anna Costa
A exposição 'A Manta do José' integra os habitantes da aldeia de Lapa do Lobo como co-protagonistas. Anna Costa
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Dennis Xavier e Ana Seia de Matos conceberam a exposição em torno do livro 'A Manta do José', escrito por Miguel Gouveia (à direita). Anna Costa,Anna Costa

Recrutar na região

Dez pessoas asseguram, em permanência, a actividade da instituição. A junta de freguesia reconheceu a importância destes vizinhos, baptizando, com o nome da fundação, um jardim que esta ajudou a financiar, e que é outro equipamento cultural, com o seu auditório ao ar livre para 300 pessoas.

A equipa permanente, tal como os colaboradores que asseguram os múltiplos serviços promovidos pela fundação, são recrutados na região, cujo comércio e hotelaria acabam por beneficiar da intensa programação desenvolvida na Lapa do Lobo. Aldeia onde não há, por exemplo, um restaurante, mas onde quase todos os fins-de-semana algo acontece, seja um cine-concerto, ou uma das várias tertúlias sobre igualdade de género, do ciclo Quando Elas Se Juntam, um dos destaques deste ano.

“Não tenho dúvidas de que a fundação contribui para o desenvolvimento intelectual destas comunidades, sobretudo dos mais jovens, a quem damos a oportunidade de aceder a iniciativas com as quais, de outra forma, não teriam contacto”, diz, sem falsa modéstia, o fundador da FLL. Carlos Torres explica, no entanto, que a organização que fundou complementa e não substitui a oferta cultural dos municípios, com os quais, aliás, estabelece parcerias, como aconteceu agora, para a edição de dois volumes sobre o património arqueológico local.

E porquê na Lapa do Lobo? Aos 68 anos, Carlos Torres, que pegou em parte do que ganhou numa bem-sucedida carreira na gestão de empresas para criar um fundo que suporta as actividades da fundação, não tem dúvidas de que é ali, numa aldeia de Nelas, que a acção que a FLL desenvolve tem mais impacto. Poderia ter criado algo parecido em Lisboa, mas, provavelmente, admite, “não teria a mesma relevância para a população, que tem mais oferta”.

Muitas vezes lhe perguntam o que ganha com a FLL, uma ideia antiga que ganhou raízes na terra da avó. Sem esperar que o PÚBLICO repita a questão, Carlos Torres, partilha a resposta, não deixando, antes, de lamentar que outros portugueses, porventura com maior capacidade financeira do que a dele, não se aventurem em projectos deste tipo, com impacto sociocultural em pequenas comunidades: “As pessoas não imaginam o grande gozo que isto nos dá. É gratificante.”

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