Um país que espera pouco, recebe pouco

Numa altura em que se discute porque emigra a geração mais formada de sempre, importa perceber o que o país não lhe dá. Só ao reconhecermos o potencial em cada pessoa podemos oferecer-lhe o melhor.

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Apesar de todos os governos de todos os países democráticos apresentarem a ciência e a educação como cruciais, é incomum ser-lhes dada a importância devida. Em parte, é porque os seus frutos não são de retorno imediato e porque são raros os líderes que acreditem verdadeiramente no seu poder transformador.

São raros, mas existem. Em plena crise económica e financeira, um grupo de pessoas de vários países e de instituições públicas e privadas juntou-se para começar um programa doutoral em alguns dos países mais pobres do mundo, os países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP). Coordenado pelo Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), implementado na Praia, com o apoio principal da portuguesa Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), da fundação brasileira Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Governo de Cabo Verde e da empresa farmacêutica alemã Merck, prometia oferecer formação avançada em ciências da vida, exigente, sem preconceito nem paternalismo.

Ao longo de quatro edições, o Programa de Pós-Graduação Ciência para o Desenvolvimento (PGCD), seleccionou perto de 50 estudantes, que beneficiaram de formação dada por alguns dos maiores peritos mundiais em biologia molecular, Ecologia, doenças infecciosas, biologia marinha e de plantas. Estes cientistas e professores viajaram de todos os continentes, de instituições como a Universidade de Harvard, o Instituto de Higiene e Medicina Tropical de Londres, a Fiocruz, a Universidade de Queensland ou a Universidade Eduardo Mondlane. No total, foram perto de 200 os docentes que passaram pela Praia, oferecendo generosamente o seu tempo e o seu conhecimento.

Aos estudantes que conseguissem bom aproveitamento nesta parte lectiva, de extrema exigência, eram oferecidas bolsas doutorais completas. Este processo de duas fases independentes (aulas e tese) era fundamental por duas razões: primeira, porque os estudantes chegavam ao PGCD com diferentes níveis de conhecimento e de confiança e era importante garantir uma base comum; segunda, porque em qualquer parte do mundo são raros os estudantes que consigam pensar em projectos científicos e saber exactamente o que querem estudar no fim de uma licenciatura ou mesmo de um mestrado.

Temos então duas possibilidades: ou assumimos essa limitação como insuperável, ou damos recursos para que cada estudante possa ambicionar a definir o seu caminho. No primeiro caso, priorizamos concursos de bolsas doutorais individuais que favorecem principalmente orientadores consagrados e limitam gerações de jovens a projectos que lhes são impostos ou escolhidos por outros. É mais fácil, mas a mensagem implícita para os estudantes é a de que não vale a pena o esforço. No segundo, os estudantes recebem bolsas, mas, principalmente, recebem apoio na concepção das suas ideias e a possibilidade se serem eles e elas a escolher o seu projecto, a sua orientação e a sua entidade de acolhimento. No caso do PGCD, o poder (e respectiva responsabilidade) foi colocado nas mãos dos estudantes.

O primeiro dia de aulas foi há exactamente dez anos, o que nos permite um curto balanço. Como sempre, a maioria dos benefícios é intangível, entre conhecimento ganho e partilhado. E nem tudo correu bem. Mas dos perto de 50 estudantes que passaram pelo PGCD, mais de 70% já defenderam as suas teses, devendo chegar aos 85% no final de 2024. Esta média está em linha com a publicada pela FCT para o mesmo período e com a de alguns dos melhores programas doutorais do mundo.

Há dezenas de publicações, algumas em revistas de topo como a Science e a Nature. Há prémios, há embaixadoras do Next Einstein Forum, um EMBO Junior Fellow, inúmeros sucessos pessoais. Alguns ex-estudantes encontram-se a fazer pós-doutoramento em instituições de enorme prestígio, outros estão na indústria, no ensino, a fazer comunicação de ciência, a gerir instituições.

Entre os que regressaram aos seus países, há professores e vice-reitores, directores de institutos, cientistas. Durante a pandemia, um antigo estudante foi chamado a coordenar o sistema de testagem em Moçambique, outro desenvolveu materiais informativos em cabo-verdiano e, pelas mãos de outro antigo aluno, fizeram-se os primeiros PCR na Universidade de São Tomé e Príncipe. São já tantos os projectos e financiamentos competitivos internacionais que, só em Cabo Verde, um par de antigas estudantes já atraiu mais de três vezes o que o seu Governo investiu no PGCD desde 2014. Afinal, foi um investimento de retorno rápido.

O sucesso do PGCD não é inesperado, porque o seu modelo foi inspirado noutros programas lançados pelo IGC, numa época de vistas mais largas: o Programa Gulbenkian de Doutoramento em Biologia e Medicina (PGDBM), que celebrou recentemente 30 anos, e o PGDB, do qual tive o privilégio de fazer parte. Seguindo o mesmo modelo, o Programa Graduado em Biologia Básica e Aplicada (GABBA), do Porto, ou o Programa Doutoral em Biologia Experimental e Biomedicina (PDBEB), em Coimbra, foram importantes programas doutorais nas ciências da vida e da saúde, com fase lectiva e fase de tese.

Em conjunto, e entre 1994 e 2007, estes programas formaram umas poucas centenas de estudantes, com um impacto positivo completamente desproporcional na ciência que se faz em Portugal. Dou quatro exemplos:

  1. É difícil encontrar em Portugal directores de institutos na área que não tenham passado por um destes programas ou mesmo só pelo IGC, como estudantes ou investigadores júnior;
  2. A área das ciências da vida é, em Portugal, aquela em que mais artigos se publicam entre os 1% mais citados e esta diferença tem vindo a aumentar em relação às outras áreas;
  3. Apesar dos antigos estudantes dos programas apenas representarem 3,5% de todas as bolsas doutorais e 7% de todas as bolsas no estrangeiro ou mistas (financiadas pela FCT entre 1994 e 2005), quase 25% de todas as bolsas do European Research Council (ERC) atraídas por Portugal entre 2007 e 2021 foram para os seus antigos estudantes (uns incríveis 43% se considerarmos só o painel das ciências da vida);
  4. Apenas contabilizando os estudantes do PGDBM, estes já atraíram para Portugal financiamento internacional dez vezes superior aos custos totais do programa.

Seria difícil encontrar sucesso mais retumbante. A que se deve o seu êxito ou, por outras palavras, o que distinguia estes programas de outros e das bolsas doutorais individuais? O mesmo que distingue indivíduos como António Coutinho (ex-director do IGC e co-fundador do PGDBM), ou António Correia e Silva (antigo ministro de Cabo Verde), de outros directores e directoras, ministros e ministras: confiança e aspiração, no seu sentido mais elevado, de desejo de realizar algo bom e generoso.

Mas porque será que não aprendemos com estas experiências e continuamos a implementar ideias tão pouco ambiciosas? A estrutura dos programas é só um exemplo que ilustra uma ideia central, particularmente relevante quando se discute porque emigra a geração mais formada de sempre. É que quando esperamos pouco dos outros, contentamo-nos com políticas e projectos medíocres: distribuímos migalhas, recebemos migalhas. Mas quando sabemos reconhecer um enorme potencial em cada pessoa, apenas podemos tentar oferecer o melhor e esperar o melhor.

Não será, em parte, esse tipo de respeito e confiança que muitos dos nossos emigrantes, altamente educados, não conseguem encontrar por cá?

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