Stress, feridas, patas e cornos partidos: lei de bem-estar animal discute-se na UE

Transporte de animais vivos continua a ser uma questão não resolvida. Portugal tem sido um defensor da continuação desta prática, que um estudo diz ser 2,5 vezes mais cara do que transportar carne.

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O transporte de animais vivos para fora da União Europeia pode ir até duas semanas Rui Gaudencio
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A Comissão Europeia apresenta nesta quinta-feira a sua proposta de revisão da legislação sobre o bem-estar animal, que fica aquém das expectativas dos movimentos de protecção animal. Entre outras questões, é visado o transporte de animais vivos, muito criticado por causa do sofrimento que implica para os animais. Portugal tem defendido a continuação deste transporte. Os activistas criticam falta de ambição na revisão desta legislação sobre o bem-estar animal.

Um estudo de caso que se centra no caso português mostra que haveria benefícios a vários títulos, inclusivamente financeiros, se fosse abandonado o transporte de animais vivos.

É no âmbito da estratégia Do Prado ao Prato que a União Europeia (UE) está a rever a legislação sobre o bem-estar animal. Estas leis, que incluem a protecção de animais criados num sistema industrial, como galinhas, vacas leiteiras e vitelos, porcos e ovelhas, não eram sujeitas a uma revisão há mais de dez anos.

Deste processo, resultou um novo pacote de medidas que visam o bem-estar animal, que a Comissão Europeia apresentará esta quinta-feira. Entre outras questões, está a ser discutido o transporte de animais vivos, em que condições deve ser realizado e se a exportação de carne e carcaças seria uma alternativa viável.

A transição para exportação de carne refrigerada e carcaças tem dividido os países da UE. Portugal, Espanha, França, Grécia, Irlanda e Roménia defendem que o transporte de animais vivos deve continuar, pois é “fundamental para o funcionamento normal dos sectores de produção animal europeus”, lê-se na declaração da ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, em nome das delegações destes países, numa reunião do Conselho da Agricultura e Pesca, a 30 de Janeiro de 2023.

De Portugal para Israel

O principal cliente de Portugal, no que toca ao comércio de animais fora da UE, é Israel. De acordo com uma base de dados online, criada pelo Tribunal de Contas Europeu, é possível verificar que, em 2021, Portugal exportou animais para Israel no valor de 170.239.791 euros, essencialmente bovinos, cabras e ovelhas.

É com base nesta importante relação comercial entre Israel e Portugal que o instituto de investigação Human Behaviour Change For Life, financiado pela associação de protecção animal Eurogroup for Animals, desenvolveu um estudo de caso sobre os impactos financeiros, ambientais e no bem-estar animal, caso Portugal exportasse carne para Israel e não animais vivos.

A principal conclusão deste estudo, que se focou na exportação de ovelhas, é que o comércio de animais vivos é 2,5 vezes mais caro do que o comércio de carne e carcaças. Ao nível ambiental, a exportação de carne refrigerada é mais amiga do ambiente, diz o estudo. Apesar de um maior consumo de combustíveis fósseis em câmaras frigoríficas, contentores e veículos de refrigeração, é possível transportar uma maior quantidade de carne, reduzindo assim o nível de emissões de carbono por quilo, quando comparado com o transporte de animais vivos.

Até ao seu destino final, os animais criados como gado fazem inúmeras viagens: do local de criação até um centro de recolha, do centro de recolha até uma embarcação, do barco até um novo país. Neste novo país seguem para um espaço de quarentena, depois para engorda e só, por fim, para o matadouro. Estas viagens podem ser de curta (oito horas) a longa duração (mais de 24 horas), e, quando falamos de viagens para países fora da UE, podem durar até duas semanas.

“Desorientação, stress pela falta de espaço, falta de assistência veterinária a golpes, feridas, patas ou cornos partidos. Além disso, estamos a falar de animais sociais, que também sofrem ao verem outros a sofrer”, avança Hugo Evangelista, membro da Plataforma Anti-Transporte de Animais Vivos (PATAV).

“No momento final de vida, quando vão para abate, são sujeitos a um mal-estar intenso que pode durar até duas semanas”, acrescenta. A exportação de carne e carcaças seria uma forma de reduzir o sofrimento destes seres vivos, evitando que realizassem estas viagens longas.

“Sem visão de futuro”

Mas, então, porque é que Portugal continua a defender o comércio de animais vivos? “Na minha opinião, é porque manter as coisas como estão é mais fácil”, afirma Inês Ajuda, veterinária e líder do Programa Farm Animals na Eurogroup for Animals.

“Há coisas que têm de acontecer para que este negócio possa mudar, não é algo feito de hoje para amanhã”, declara a veterinária.

Para Portugal (e a União Europeia) transitar para o comércio de carne, são necessárias mudanças no sector, investimentos em equipamentos de refrigeração, matadouros e novas negociações com os principais países importadores – por exemplo, no caso da exportação de Portugal para Israel, a criação de matadouros kosher em Portugal seria uma das alterações necessárias.

Mas a transição é possível, existindo vontade política, defende Inês Ajuda. “A Nova Zelândia fez esta mudança, trabalharam com os países terceiros e com as comunidades religiosas e conseguiram. Não podemos pensar só no imediato, é necessária uma visão a longo termo”, defende.

Apesar de os Estados-membros da União Europeia se encontrarem divididos, a verdade é que a opinião pública não parece ter dúvidas sobre esta questão. Entre 15 de Outubro de 2021 e até 21 de Janeiro de 2022, foi realizada uma consulta pública com 59.281 pessoas. Desta auditoria apurou-se que 94% dos cidadãos inquiridos consideram que o transporte de animais vivos para fora da UE deveria ser proibido.

A Eurogroup for Animals e a PATAV têm seguido de perto os trabalhos da Comissão Europeia para este novo pacote de medidas sobre o bem-estar animal. Ao PÚBLICO, ambos os representantes das associações dizem que o trabalho que têm acompanhado se revela insuficiente e “sem uma visão de futuro”.

“Os cidadãos europeus estão preocupados com o bem-estar animal, o inquérito do Eurobarómetro indica isso mesmo”, diz Hugo Evangelista. “Estávamos à espera que a legislação correspondesse a estas preocupações”, adiciona. Mas não parece ser assim.

O mais recente Eurobarómetro sobre o tema, divulgado em Outubro, mostra que 91% dos europeus consideram importante proteger o bem-estar dos animais de quinta e garantir que têm condições de vida decentes. E 84% acham que o bem-estar destes animais no seu país devia ser melhorado. O tempo de transporte de animais vivos devia ser reduzido dentro na UE para 83% dos inquiridos, e 90% consideram que as práticas de criação devem cumprir regras éticas básicas.

“Pouco muda”

Dos documentos rascunho da nova legislação europeia a que a PATAV teve acesso, as medidas ficam muito aquém do esperado, adianta Hugo Evangelista: “Em nenhum momento é posto ‘em cima da mesa’ o transporte de carcaças e carne refrigerada. Também nunca ponderam a possibilidade de colocar um veterinário a bordo, uma exigência muito antiga dos movimentos de protecção animal”, explica.

“Há uma série de pontos e ‘pontinhos’, mas ao nível prático muito pouco muda”, continua o porta-voz da PATAV. “Por exemplo, para o transporte de uma ovelha de 50 quilos, na legislação actual, são necessários 0,34 metros quadrados. Na nova legislação, este espaço será actualizado para 0,5 metros quadrados, ou seja, vão aumentar ligeiramente o espaço durante o transporte”.

Também Inês Ajuda destaca alguns problemas da legislação em construção: “Será imposto um limite horário de nove horas nas viagens para o matadouro e um limite de 20 horas para animais que vão para centros de recolha, engorda ou reprodução.”

O problema, segundo a veterinária, são as inúmeras derrogações a este limite horário: “Uma viagem de barco entre países da União Europeia não conta. Por exemplo, um vitelo que venha da Irlanda viaja cinco horas até ao porto e depois viaja 18 horas no mar. Quando chega ao continente, para todos os efeitos viajou apenas cinco horas.”

No caso da exportação de animais para fora da UE, “fica tudo exactamente igual”, lamenta Inês Ajuda.