As mulheres devem mandar no futebol feminino

Entre os beijos chauvinistas de Rubiales e os cheques paternalistas de Infantino, o futebol feminino está condenado a ser tratado como uma criança. A autonomia é a única alternativa.

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Já passaram semanas suficientes para podermos afirmar, sem hipótese de contestação, que os beijos de Luis Rubiales têm, nas entidades em estado de coma, o efeito oposto do beijo do príncipe encantado (também sem registo de consentimento prévio, repararam?). Antes de o presidente da Federação Espanhola de Futebol se lembrar de dar um “piquito” nos lábios de Jennifer Hermoso, o debate público sobre o futebol feminino dormia, mas ainda roncava de vez em quando. Depois do “piquito”, como ele lhe chamou, passou a ser admissível só o unanimismo, e aqui vou deixar-me deslizar até à zona de perigo extremo para admitir que a comichão provocada por esse consenso imposto deu vontade de defender o indefensável.

Sentimo-nos a jogar pela equipa certa, mas sem nenhuma simpatia pela maioria dos colegas, por regra, demagogos, paternalistas, políticos no pior sentido, ou apenas – e esse é o maior problema -, inúteis, porque só pode ser esse o resultado do cruzamento de tantas insinceridades politicamente correctas. Nem sei se eu próprio estou lá bem, porque, sofrendo de um machismo diferente daquele de Rubiales, talvez esteja próximo do de Bocage. Mas resistir a abrir a porta ou a ceder um lugar no metro a uma mulher é-me, espantosamente, mais fácil do que aceitar premissas como “futebol só há um” ou suportar ataques, nos meus tempos de director de jornal, por deixar que os redactores chamassem futebol feminino ao futebol feminino.

Uma das consequências mais imprevistas do caso Rubiales foi a repescagem, meio despropositada, de umas velhas declarações da tenista Serena Williams defendendo que “o ténis masculino e o ténis feminino são quase modalidades diferentes”. “Se jogasse com Andy Murray [tenista inglês], perderia 6-0, 6-0, em cinco ou seis minutos, talvez dez. Os homens são muito mais rápidos e batem e servem com mais força.” Na comunidade do futebol feminino, aceitar a diferença desta maneira conduziria à excomunhão (como, de certa forma, levou à de Serena, em 2013), mesmo que isso implique fechar os olhos, por exemplo, à alarmante disparidade do número de roturas dos ligamentos cruzados entre mulheres e homens, ou negar qualquer tipo de distinção enquanto se pressiona as marcas desportivas a fabricarem botas específicas para senhoras, porque as do tal futebol único e indivisível só são adequadas aos pés com cromossoma Y.

A jornalista e escritora Jen Offord meteu-se em sarilhos, depois do Euro’2022 ganho pela Inglaterra, por ter defendido que “o futebol das mulheres não é como o dos homens”. “É um produto diferente e apresenta oportunidades diferentes. Para começar, o jogo feminino ainda não foi corrompido pelo dinheiro, nem acusado de más condutas ou de fomentar uma cultura tóxica nos adeptos. E nós podemos evitar que siga o mesmo caminho do futebol masculino.” Atentem, por favor, ao sujeito da última frase. Na identidade desse “nós” reside o verdadeiro momento Rubiales do futebol feminino. O “nós” responsável pela explosão do jogo entre as mulheres é constituído pela FIFA e pela UEFA, e estas organizações espoletaram-na como “um exercício de fazer dinheiro”, não por “obrigação moral” (para responder à dúvida retórica que Jen Offord levanta no seu artigo de 2022).

Nunca passou pelas cabeças calvas de Sepp Blatter nem do sucessor Gianni Infantino lançar o futebol feminino para redimir os pecados do masculino. Na melhor das hipóteses, gostariam que fosse uma cópia exacta a uma escala inferior, para não pôr em risco o objectivo que esteve no início e estará no fim da revolução feminina: aumentar os lucros do futebol dos homens. Nunca pretenderam, nem pretendem agora, um concorrente ao masculino; quiseram inocular as mulheres com o vírus do praticante, imaginando que, com isso, alargariam o mercado já existente para os do costume.

Para esse “nós” da FIFA e da UEFA interessa inflacionar os números e a dimensão do sucesso da megaoperação à escala mundial pelo crescimento do futebol feminino. E às mulheres do futebol feminino, interessará acreditar nisso? As universidades de Zurique (Suíça), Southern Utah (EUA) e Stavanger (Noruega) juntaram-se para um estudo multinacional com o título “Informação de género e percepção de qualidade: uma experiência com a performance do futebol profissional”. Os resultados deste trabalho, assinado por quatro homens, superaram as melhores expectativas do movimento feminino. Perante imagens vídeo nítidas, em que o sexo dos atletas era discernível, os participantes viam mais qualidade nos jogos masculinos; perante imagens desfocadas, eram incapazes de encontrar dissemelhanças. Lançou-se foguetes, e abriu-se champanhe: não há diferença entre o futebol dos homens e das mulheres.

Ou seja, não há diferença entre um jogo com 250 milhões de praticantes registados no planeta e outro com apenas um décimo desse montante (números da FIFA, com futsal, futebol de praia e até matraquilhos à mistura), cifras que seriam muito mais vertiginosas se pudéssemos contabilizar os praticantes informais. Não há diferença entre um jogo que foi literalmente ilegal em países como o Brasil e a Inglaterra até às décadas de 1970 e 1980 e outro com uma aculturação ininterrupta de século e meio. Também não fazem diferença os recreios de escola onde ainda vão sendo quase exclusivamente os rapazes quem joga à bola (e continuarão a ser enquanto for proibido dizer que a diferença existe). Mesmo que só houvesse 10 jogadores federados por cada jogadora, mesmo que os estádios de desenvolvimento se assemelhassem e que as condições de treino fossem iguais, bastaria a actual exiguidade da base de recrutamento para impossibilitar uma qualidade de jogo comparável. O que o estudo das três universidades prova é a existência de um preconceito, mas na realidade eles são dois: o preconceito de julgar uma partida de futebol com base no sexo dos participantes e o preconceito oposto, de que já não há diferenças entre o futebol masculino e feminino.

Antes do Mundial’2023, a excelente revista Piauí escreveu, citando a Confederação Brasileira, que, no maior produtor de talento do mundo, havia 22 futebolistas profissionais homens por cada mulher. Curiosamente, a mesma desproporção existente entre o preço dos bilhetes mais baratos dos últimos Mundiais masculino (2022) e feminino. Pelos 605 dólares que custavam os primeiros no Qatar, diz a revista, era possível comprar 22 entradas para o Austrália/Nova Zelândia’2023 (27 dólares). Isso não belisca o êxito das enchentes tão propagandeadas, claro, mas devia colocá-las em perspectiva. A NBA ganhou a batalha ao futebol europeu, entre o público chinês, porque durante anos não cobrou dinheiro pela transmissão dos seus jogos na China. Embora percebendo que a FIFA e a UEFA se multiplicam em manobras de sedução e marketing para hiperbolizar o sucesso do futebol feminino, há razões para festejar desde que se separem os êxitos da FIFA e da UEFA dos êxitos do futebol feminino.

O salário médio anual de uma jogadora profissional são 12.791 euros. O presidente da FIFA arriscou o prémio Nobel do feminismo quando anunciou que cada participante no Mundial’2023 receberia 27 mil euros só por lá estar. As campeãs mundiais levaram 246 mil euros e as semifinalistas 150 mil. Isso significa que a FIFA provocou, artificialmente, a maior disparidade financeira da história entre atletas internacionais e não internacionais, fantástica para 736 jogadoras, mas de consequências questionáveis para o futebol feminino enquanto todo.

Nalgumas selecções, como as africanas, só o prémio de presença equivaleu a uma década de rendimentos acima da média. Theophilus Afelokhai, o futebolista masculino mais bem pago da Nigéria, recebe menos de 1500 euros mensais. No caso das nigerianas, 54 mil euros (o prémio pelos oitavos-de-final) equivalem a três vezes o salário anual de Afelokhai e são mais do que o suficiente para as levar a ponderar, por exemplo, o abandono de um futebol de maus-tratos e sacrifícios. Isto, claro, se elas chegarem a recebê-lo, porque quem ficou encarregado de o entregar fomos “nós”, ou seja, as federações que compõem a FIFA.

O caso Rubiales versa, todo ele, sobre a diferença, numa Espanha onde a violência doméstica se mantém em números e gravidade medievais, e a reflexão a fazer é que o futebol feminino deve ter direito ao mesmo que o futebol masculino possui há 150 anos: ser a prioridade em vez do adereço. Isso nunca acontecerá dentro da FIFA ou das confederações. Ali, as alternativas são Rubiales ou Infantinos. De um lado, o mentecapto, do outro o paternalista condescendente que não consegue dirigir-se às mulheres sem parecer que está a elogiar uma criança de quatro anos pelo desenho que fez na creche.

O futebol feminino deve ser entregue às mulheres, e com o máximo de autonomia possível. O extraordinário do caso Rubiales nem sequer foi o acto em si, mas a naturalidade com que ele – o homem – inverteu as posições, ao recusar repetidamente que fosse a mulher a dizer-lhe onde está a linha vermelha sobre o seu próprio corpo. Da mesma forma, não devem ser a FIFA e a UEFA (nem os tribunais, nem o Governo espanhol) a conduzir o futebol feminino e a estabelecer-lhe os limites, ora chauvinistas se for um Rubiales a decidir, ora paternalistas e demagogos se for um Infantino a mandar.

O futebol feminino não está bem quando uma federação lhe paga menos do que ele vale no mercado, como sucedia com a selecção dos Estados Unidos, nem está bem quando lhe pagam muito acima de qualquer racional financeiro só para ficarem impecáveis na fotografia. E isso só se resolve encontrando forma de lhe dar o máximo de responsabilidades: a das contas, a dos limites, a de recusar as diferenças que lhe apetecerem e a de arcar com as consequências.

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