Mudar o Atlântico em quatro vagas (3): Inovar do mar ao prato

Com os stocks de pescado a diminuir e a procura a subir, o sector enfrenta um desafio de sustentabilidade. O projecto Safer permitiu acelerar a inovação nesta indústria para maior controlo de recursos

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A Conservas Pinhais & Cia. implementou software que permitiu digitalizar o processo de rastreabilidade e medir indicadores ambientais Adriano Miranda/Arquivo Público
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Em Outubro celebra-se o aniversário da Conservas Pinhais & Cia., que abriu portas em 1920 na comunidade piscatória de Matosinhos “e mantém o orgulho de dizer que faz o produto conforme era feito há 103 anos”, segundo Marco Ferreira, director de operações e qualidade da auto-intitulada “manufábrica”.

A sardinha, rainha destas conservas, mas também o carapau e a cavala recebem, ao longo do seu processo de transformação, “um cuidado diferente” das cerca de 120 operadoras de produção, conta Marco Ferreira. Há equipamentos para os processos que os exigem, “como a cravação e esterilização das latas”, contudo o embalamento (com papéis de diversas cores) permanece manual. “Seria fácil de automatizar, mas mantemos assim, porque [as latas] são embrulhadas como prendas para o nosso consumidor.”

A tradição não exclui a modernização do processo. “Apesar de querermos continuar a ser muito tradicionais, naquilo que tem que ver com rastreabilidade e gestão de qualidade, queremos estar um passo à frente e estamos já algum tempo a trabalhar na digitalização dos processos”, esclarece o director.

No âmbito do projecto Safer, cujo objectivo foi potenciar a inovação no sector do pescado, a empresa implementou o software da portuguesa Foodintech, que permitiu digitalizar o processo de rastreabilidade e medir indicadores ambientais. De novo Marco Ferreira: “Passámos a conseguir ter uma monitorização dos gastos e a perceber, por exemplo, quanto é que precisamos de água e energia para produzir x quilos de sardinha.”

“Aquilo que não consigo medir não consigo gerir” é a máxima que está na base da criação do Flow Manufacturing, explica o fundador da Foodintech, Miguel Fernandes. “É um software vertical de controlo integral das operações industriais” que “tenta digitalizar tudo aquilo que é informação pertinente à produção”. Chama-se a este tipo de programa um MES - Manufacturing Execution System. “Estamos a falar de coisas objectivas como stocks, rastreabilidade, custeio, segurança alimentar ou referenciais normativos específicos da agro-indústria”, como é o caso do MSC (Marine Stewardship Council), que certifica a pesca sustentável, diz o engenheiro zootécnico.

Através do Fórum Oceano - Cluster do Mar Português, do qual é associada, a Foodintech testou esta tecnologia em fábricas de conservas na Irlanda, na produção de marisco em França e no Consórcio Conserveiro de Espanha, tendo sido implementada nestes últimos dois países.

O Flow foi um dos serviços destacados pelo projecto Safer - Smart Atlantic Seafood Clusters, ao abrigo do programa Interreg Espaço Atlântico 2014-2020, que se focou em desenvolver uma rede de inovação para a indústria do mar nos cinco territórios da região atlântica europeia: Portugal, Espanha, França, Reino Unido e Irlanda.

O projecto decorreu em duas fases, entre Outubro de 2017 e Junho de 2023, com um orçamento de cerca de 2,2 milhões de euros. Em 2020, foi distinguido com o prémio “Atlantic Ports and Blue Economy” na quarta edição dos prémios Atlantic Project Awards.

Inovação é necessária para a sustentabilidade

O mais recente relatório anual sobre a situação mundial do pescado e da aquacultura da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) concluiu que “estamos a comer mais produtos aquáticos do que nunca – cerca de 20,2 quilogramas per capita em 2020 –, mais do que o dobro da taxa de consumo de há 50 anos”. Ainda assim, a FAO prevê aumentos na procura por produtos do mar de 15% até 2030, o que representa um consumo anual de 21,4 quilogramas de peixe e marisco por habitante.

Actualmente, mais de 85% dos stocks pesqueiros mundiais estão a atingir ou mesmo ultrapassar os seus limites biológicos, concluiu uma análise da WWF deste ano. Face à degradação dos ecossistemas, “motivada por sobrepesca, poluição e má gestão, entre outros factores”, a FAO considera que “melhorar a gestão global das pescarias continua a ser crucial para restaurar os ecossistemas e proteger o abastecimento a longo prazo de produtos aquáticos”.

Para o coordenador do projecto Safer, acelerar a inovação no sector é a chave para atingir esse objectivo. Jose Manuel Emeterio é gestor de programas na Rede das Regiões Europeias para Aplicação das Tecnologias da Comunicação (ERNACT), sediada na Irlanda, que promove a transformação digital entre colectividades regionais e locais na União Europeia.

O projecto Safer foi a primeira introdução do engenheiro de telecomunicações ao sector do pescado. “Uma coisa que me surpreendeu muito foi este ser um sector ainda muito tradicional. Em muitos casos, o trabalho na linha de produção tem por base o papel”, refere. Entre os cinco países parceiros, Jose Manuel Emeterio identifica uma mesma reticência na implementação dos 80 serviços tecnológicos desenvolvidos pelos nove parceiros do Safer. “Acho que é um sector ainda relutante face à tecnologia, mas no final [do projecto] foi mesmo positivo ver que perceberam o seu valor”, reflecte.

Miguel Fernandes recorda a experiência de 15 anos da Foodintech para reconhecer que houve uma “evolução substancial na última década” face à abertura das empresas agro-industriais “para a digitalização dos seus processos”, muitas vezes alavancada por pressões do mercado ou por “requisitos técnico-legais”. O engenheiro reconhece que “ainda há um grande caminho a percorrer”.

Além das instalações de MES com o software da Foodintech, o projecto testou outras tecnologias na indústria como a “internet das coisas”, através de um sistema que dá às empresas de aquacultura mais informações sobre o estado de saúde dos seus animais e as condições ambientais que poderão impactar a produção, como a qualidade da água.

A aquacultura de precisão, ou seja, a produção através destes processos automatizados, poderá ajudar à prevenção de doenças, à diminuição do uso de antibióticos ou outros tratamentos químicos e a reduzir os impactos ambientais da actividade, segundo dados recolhidos pelo Safer.

Outros serviços tomaram a forma de aplicações móveis, como a que ajudou à fiscalização da Loughs Agency, na Irlanda do Norte, das colheitas de ostras na região de Derry e Strabane. Cada etiqueta distribuída pela agência aos pescadores, permitindo a captura de um máximo de 25 quilogramas de ostras, era inspeccionada manual e pontualmente. A inspecção digital permite evitar erros e abusos.

Indústria 5.0

O Portugal 2030, programa de parceria com a Comissão Europeia para o financiamento projectos de desenvolvimento da economia (23 mil milhões de euros), prevê Estratégias de Especialização Inteligente (RIS3) para quatro regiões portuguesas. Entre estas medidas que promovem a inovação, a sustentabilidade e o crescimento económico sustentável, a economia do mar está representada nomeadamente no que toca à promoção e internacionalização de pequenas e médias empresas (PME) e à digitalização do sector.

O projecto Safer formulou um guia de recomendações a pensar neste tipo de programas, bem como na estratégia "Do Prado ao Prato" do Pacto Ecológico Europeu, para que as actividades testadas nos vários países do Atlântico europeu possam ser replicadas e o sector do mar crie mais resiliência e competitividade face aos desafios ambientais que enfrenta. Jose Manuel Emeterio resume estes objectivos no conceito de indústria 5.0, no qual o projecto Safer se baseia.

“É baseado em três pilares principais – sustentabilidade, resiliência e condições de trabalho –, tentando tornar a indústria mais sustentável social e ambientalmente”, explica o engenheiro. “Acho que [o Safer] foi o primeiro projecto, a nível europeu, que foi reflectindo sobre isto: tentar trabalhar com a indústria para que a tecnologia se adapte a ela, e não o oposto.”

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