Nobel da Medicina: não há aplicação sem conhecimento fundamental

A “ditadura da produtividade” que se vive na ciência pode ser contraproducente e afastar cientistas com excelentes ideias.

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Na primeira semana de outubro, a história repete-se e os prémios Nobel são anunciados, começando pelo da Fisiologia ou Medicina. Como foi amplamente divulgado, este ano este prémio foi atribuído a Katalin Karikó e Drew Weissman, pelas “descobertas sobre modificações de bases de nucleósidos que permitiram o desenvolvimento de vacinas de RNA-mensageiro (mRNA) eficazes contra a covid-19”. A mensagem que mais passou para a opinião pública foi a de que o prémio tinha reconhecido o desenvolvimento da vacina contra a covid-19, mas temos de dissecar melhor o anúncio feito pela Assembleia Nobel para compreender que o que foi distinguido foi a investigação fundamental que permitiu que, em pouco menos de um ano do aparecimento da pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2, surgissem vacinas altamente eficazes contra a covid-19, que já salvaram milhões de vidas.

As vacinas são uma forma engenhosa de preparar o nosso sistema imunitário para montar uma resposta contra agentes patogénicos quando os encontra. No caso das vacinas virais, começaram por ser constituídas por vírus mortos ou enfraquecidos e evoluíram para vacinas que apresentam ao sistema imunitário uma proteína ou parte dela, da superfície do vírus.

Nas nossas células, a informação genética contida no DNA é primeiro copiada para uma molécula que se chama RNA-mensageiro (mRNA), que dá a instrução para a produção das proteínas. O mRNA pode por isso ser usado para levar as nossas células a produzir, por exemplo, uma proteína viral ou parte dela, que depois irá ser apresentada ao sistema imunitário.

O problema que Karikó e Weissman conseguiram solucionar foi o de que o RNA produzido in vitro desencadeia uma resposta inflamatória indesejável, ao contrário do RNA produzido pelas nossas células. Isto aconteceu porque a dupla de cientistas percebeu que havia modificações químicas nas quatro “letras” que compõem esta molécula (A, U, G e C – as bases de nucleósidos) no RNA produzido pelas nossas células e que não existiam no RNA produzido in vitro; e que a ausência destas modificações leva à resposta inflamatória e também a uma menor produção de proteína.

Introduzindo estas modificações, conseguiram impedir a resposta inflamatória e aumentar a quantidade de proteína que é induzida pelo mRNA. Estava então aberto o caminho ao uso do mRNA para dar instrução às nossas células para produzirem proteínas que tenham o efeito de uma vacina, protegendo contra uma infeção por um agente patogénico. E as aplicações vão para além da proteção contra infeções, pois estendem-se também ao seu uso para combater certos tipos de cancro.

Este Prémio Nobel também chamou a atenção pela história da carreira de Katalin Karikó, uma investigadora nascida na Hungria e que, entre 1989 e 2013, foi professora auxiliar na Universidade da Pensilvânia. Karikó foi despromovida, viu o seu salário reduzido e foi forçada a reformar-se, por falta de competitividade e de capacidade para atrair financiamento. Juntou-se depois à BioNTech, a empresa que juntamente com a Pfizer desenvolveu uma das vacinas para a covid-19.

Também se falou do primeiro encontro fortuito entre Karikó e Weissman junto à máquina fotocopiadora, sem o qual a colaboração entre estes dois investigadores não teria acontecido. E, ainda, da história contada por Karikó de que a sua mãe (falecida em 2018) sempre lhe dizia, na semana que antecedia o anúncio dos prémios Nobel que, daquela vez, talvez fosse ela a ganhar. E Karikó ria-se e replicava que nem era professora nem tinha sequer uma equipa. Mas a mãe respondia: “Sim, mas trabalhas tanto.” E Karikó encerrava o assunto dizendo-lhe que “todos os cientistas trabalham muito”. Bem, parece que a sua mãe, afinal, não se enganou.

Por fim, as lições que destaco deste prémio são as seguintes: era esperado um Prémio Nobel para as vacinas da covid-19, mas a Assembleia Nobel decidiu (e bem) premiar as descobertas fundamentais que permitiram o seu desenvolvimento – não há aplicação sem geração de conhecimento fundamental; a perseverança demonstrada por Katalin Karikó é fundamental para se fazerem grandes descobertas; a “ditadura da produtividade” que se vive na ciência pode ser contraproducente e afastar cientistas com excelentes ideias; e que as vacinas salvam milhões de vidas e são uma das armas mais eficazes de que dispomos contra as doenças infeciosas e também outras doenças como o cancro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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