A videira como árvore genealógica, na Casa Santa Eulália
A Casa Santa Eulália fica na sub-região de Basto, mas já em chão transmontano, com a diferença que essa subtileza geográfica faz nos vinhos, produzidos por uma família com raízes fundas no território.
A meio da prova, Francisco sai da sala, como quem de súbito se lembra de algo. “Deixe-me mostrar-lhe uma fotografia.” Regressa com uma moldura na mão, o retrato a preto e branco de uma criança apoiada num tronco de videira. “Outro exemplar de batoca já absolutamente decrépita”, lê-se na legenda batida à máquina, em referência à casta de uva branca que hoje se encontra praticamente extinta.
A presença da criança ajuda a perceber a escala. É assombroso o volume da videira, coisa rara de se ver nos dias que correm. A fotografia serve também de marcador da história da Casa Santa Eulália – o miúdo, filho dos caseiros, tornou-se enxerteiro e tractorista da quinta, e teria hoje noventa e muitos anos se ainda fosse vivo. A vide, essa lembra o tempo em que a propriedade, muito mais extensa do que hoje é, fragmentada à força de partilhas entre irmãos e primos, “já tinha uma adega com capacidade para 300 mil litros” e produzia em “40 hectares de vinha em ramada”, enquadra Francisco.
Se essa área de cultivo hoje já é considerável em campo corrido, imagine-se no tempo em que as vinhas apenas eram cultivadas em altura, nas bordaduras dos terrenos.
Ligação à terra
Além de anfitrião da visita, Francisco Marques Leandro é enólogo residente e o proprietário da Casa Santa Eulália, o rosto de já-não-se-sabe-que-geração da família à frente desta propriedade. “A ligação à terra e à produção de vinho está documentada desde 1822”, mas, fontes oficiais à parte, Francisco sabe que os seus antepassados já por ali andam há muito mais tempo.
A história que ele conta como momento fundacional daquilo que a casa é hoje começa com o seu avô Joaquim, que já tinha um cuidado com a qualidade inédito na sua geração, e com o seu tio-avô Manuel, pioneiro no engarrafamento numa época de vinho a granel.
Ambos tiveram um papel decisivo na passagem de testemunho, sobretudo o avô, com quem Francisco aprendeu desde miúdo “a fazer todo o trabalho da vinha”. Francisco vivia no Porto com os pais, mas os fins-de-semana eram todos passados no campo. “Aos 10 anos já conduzia o tractor”, lembra.
A ligação à terra perdurou. Depois de se formar em biotecnologia, fez uma pós-graduação em enologia, eventualmente com um propósito muito concreto em vista. Com a morte do avô em 1997 e a do tio-avô no ano seguinte, a propriedade de 160 hectares passa para as mãos dos pais de Francisco, e a produção de vinho afigurou-se como “o sustento para manter o património”.
A vinha já tinha sido modernizada no arranque dos anos 1990, com a chegada dos fundos europeus para a agricultura – as ramadas deram lugar às linhas em cordão e as castas tintas, tradicionalmente maioritárias, foram substituídas por variedades brancas –, e novamente em 1997, pela mão dos pais de Francisco.
Tudo somado, a Casa Santa Eulália conta hoje 45 hectares de vinha, divididos por 17 parcelas, todas situadas na freguesia de Atei, em altitudes entre os 170 e os 400 metros. No encepamento têm particular importância o avesso e o alvarinho, ambos representados em vinhos monocasta, mas também arinto, azal, loureiro, trajadura, sauvignon blanc e, em jeito de evocação do passado da quinta como produtora de tintos, têm também talhões de vinhão e de espadeiro – bem como de touriga nacional, que tem como finalidade a produção do rosé Terroir Velho Mundo.
Mineralidade e salinidade: o terroir de Mondim
Além de cumprir funções de adega, graças ao acréscimo de uma ala de traço discreto com fachada em ripas de madeira, a antiga casa dos caseiros da quinta, um solar seiscentista de traço austero, cumpre também a função de sala de visitas. O salão do piso superior, com chão e tectos em madeira, serve o duplo propósito de loja e sala de provas.
Sobre a mesa, Francisco põe à prova as três marcas da casa. A gama de entrada Plainas é representada pelo tinto de vinhão, que apresenta o frutado típico da casta e acidez domada, e por um branco de azal e arinto, duas castas-emblema da sub-região de Basto, onde sobressai o perfil “que o mercado exige”, marcado pela adição de gás carbónico e algum açúcar residual – características que, admite Francisco, têm “vindo a tentar reduzir”.
A gama Casa Santa Eulália é representada pelo monocasta de avesso, que puxa à conversa o tema da mineralidade, um traço de personalidade caro ao enólogo-produtor. “Trabalhamos com tecnologia q.b., o que mais nos importa é o respeito pela vinha, pela terra, pelo clima”, introduz, para abordar o tema da diferenciação, inclusive dentro da sub-região, que o rio Tâmega corta em duas no sentido latitudinal. “Do lado de Celorico, temos vinhos mais alcoólicos, mais arredondados, fruta madura e acidez menos vincada, enquanto em Mondim são mais minerais, mais salinos e com acidez crocante.” É esse perfil que lhe importa transmitir – e que está bem presente no tal monocasta de avesso.
Por fim, Francisco verte no copo o Terroir Velho Mundo, não o rosé de touriga nacional, mas um branco de outra casta que também é um estandarte dos vinhos nacionais, o alvarinho. Além dessa componente evocativa das virtudes das castas que lhes dão origem, ambos os vinhos têm em comum a passagem por barrica e a vocação gastronómica. No rótulo, partilham também a mesma imagem. Aquela que fez Francisco sair da sala para ir buscar o retrato do miúdo apoiado numa videira desmesurada.
“Usámos uma fotografia parecida com esta, no início”, recorda. Acontece que o código da publicidade proíbe a associação de menores a bebidas alcoólicas, mesmo que o menor em causa tenha chegado a nonagenário e que a associação surja apenas para efeito de escala. “Tivemos de mudar”, resume, com um sorriso e um encolher de ombros quase imperceptível. Ficou só a cepa, sem a criança e sem a noção de escala.
Rótulos à parte, Francisco, que teve a felicidade de correr por entre estas vinhas em criança, vê agora os seus filhos, Francisco e Henrique, de 11 e 7 anos, a crescer no mesmo ambiente com a felicidade de quem não está enclausurado entre quatro paredes. Todos os fins-de-semana, diz a mãe, Benedita, trocam o Porto pela liberdade do campo. “Durante a pandemia não tiveram sequer a sensação de confinamento”, conta.
Talvez já não venham a aprender a manejar um tractor antes da idade legal para conduzir, mas a paixão, nota-se, já vai ganhando raízes. “E o Quico já quer trabalhar a sério”, contam, com orgulho. A passagem de testemunho parece estar assegurada.
Casa Santa Eulália
Atei (Mondim de Basto)
GPS: 41.4645, -7.9265
Tel.: 255390708
Web: casasantaeulalia.pt
Visitas com prova desde 13 euros (3 vinhos; marcação aconselhada)
Almoços regionais com vinhos (por marcação) sob consulta
Este artigo foi publicado no n.º 10 da revista Singular.