A história de amor que nunca aconteceu

Eu traí o mar a quem devo tudo, para ficar a olhar para sua silhueta, na esperança de que ela olhasse para trás. Não olhou. Olhei-a eu.

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Tive 24 horas duras nos cuidados intensivos. Tinha dois doentes a “arder”. Fiz o que tinha a fazer, acho eu, mas aquelas vidas estavam a fugir-me das mãos. Deixei duas famílias a chorar porque na comunicação médica dizer a verdade é inegociável. Às 8h30 passei o turno a uma colega que é hipercompetente e fui à minha vida, exausto. Apeteceu-me ir andar a pé para arrumar as ideias.

Foi em Maio. Estava uma manhã de sol bonita. Fui olhar para o mar, que sempre foi o meu melhor conselheiro.

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Mesmo em cima da Praia da Luz, na Foz do Douro, existe uma varanda em forma de meia-lua. Sempre gostei de olhar para o mar e olhar para dentro, neste sítio, desde muito miúdo. As ondas estavam grandes, o vento leste desenhava-as na perfeição, e o sol nas minhas costas apontava para a imensidão desta massa de água, que sempre moldou a minha personalidade. As lágrimas começaram a querer sair. Estava numa espécie de hipnose com viagem marcada para o infinito, quando ouvi a voz de uma mulher muito próxima de mim.

“Está tudo bem?” - disse-me ela.

Olhei para ela, com a surpresa de quem está a ver uma aparição, e porque me perdi no seu olhar, demorei uns segundos a responder, enquanto memorizava as linhas do seu rosto.

“Estou bem, obrigado. Estou só cansado, mas também feliz por estar aqui” - respondi de sorriso aberto, perdido nas palavras, porque na verdade esqueci-me de toda a minha vida, invadido pelo espanto que esta mulher me causou. Todas as respostas me pareciam erradas, o que fez com que o que me saiu da boca não tivesse conexão com o cérebro, que, naquele momento mudou para um canal cuja frequência eu desconhecia.

Ela sorriu e foi-se embora. E eu traí o mar a quem devo tudo, para ficar a olhar para sua silhueta na esperança de que ela olhasse para trás. Não olhou. Olhei-a eu.

Uns dias mais tarde, fui sair à noite com uns amigos, na Baixa do Porto. Algures numa rua cheia de gente, entre os bares, um maravilhoso acaso pôs-nos frente a frente a uns bons metros de distância. Visão túnel, efeito íman, dois corpos que decidiram, por autodeterminação, aproximarem-se. Foi a linha de partida para o resto da minha vida.

Eu lembro-me, até hoje, de toda a nossa conversa. Lembro-me de me rir só por sentir que ela existia. Lembro-me de querer que o tempo congelasse ali. Lembro-me de sentir, logo ali, que dava a vida por ela. Lembro-me de me esquecer de tudo o que estava à minha volta. Lembro-me que as horas passaram mais rápido do que os beijos. Lembro-me das histórias que partilhámos, e lembro-me de ela me fazer sentir querer ser um homem melhor.

No final da noite, ela fez uma pausa no momento, para me dizer: “Eu tenho uma coisa para te contar. Eu tenho uma doença. Tenho meses de vida.” Eu nem pestanejei e deixei o meu coração falar: “E eu só quero que sejas a última mulher da minha vida”.

Passou um mês, ao certo, de amor, de paixão, de cumplicidade, em que não dei pelo tempo a passar, nem muito menos pensei no tempo que faltava. Era bom e isso chega. Para sempre é o momento.

Não sei quanto tempo durou, porque esta história nunca aconteceu. Está no título. Mas se leram até aqui, talvez tenham sentido o que eu senti ao escrever. E se sentimos é porque há alguma verdade.

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Estamos muito presos ao que acontece, sem nos libertarmos para o que sentimos. E o que eu senti foi uma história de amor. E a verdade é esta: Eu dava a vida por ela, porque ela limpou-me as lágrimas, mostrou-me o amor, e salvou-me a vida.

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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