As árvores douradas e as armas nucleares

Há uma discussão perene sobre a sensatez da decisão de usar bombas nucleares pela primeira vez. Nunca haverá acordo porque a moral dos vencedores é diferente e irreconciliável com a dos vencidos.

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Tenho o privilégio de viver perto de um acolhedor jardim público em Lisboa, a cidade onde nasci. Vou lá passear e refletir com frequência e delicio-me a observar as árvores, as plantas e as aves. As árvores com a sombra amiga, o ciclo anual sempre renovado e a majestade serena do porte fascinam-me. Adquiri uma relação de amizade com muitas delas e com a sua variedade.

Não vou referir todas as espécies, apenas algumas que mais me inspiram. Começo por uma árvore da Europa e do Médio Oriente, de folha persistente, considerada sagrada em várias culturas, que se cobre no Outono de pequenas sementes rodeadas por um arilo vermelho comestível e saboroso o teixo (Taxus baccata). Mas cuidado porque as sementes e as folhas são tóxicas, é preciso ter cuidado. Sigo para a região do rio Tipuani, um remoto afluente do rio Beni, por sua vez afluente do Amazonas, que corre nas vertentes ocidentais dos Andes, na Bolívia, a norte de La Paz. É nas florestas dessa região e também na região desde a Bolívia ao norte da Argentina e do Uruguai que se encontra a tipuana (Tipuana tipu), cujo nome na Bolívia é tipu. Uma árvore caducifólia, majestosa, larga, quase gigante, cujo tronco e grandes ramos têm formas voluptuosas, com flores amarelas que acabam por cobrir o chão de um tapete amarelo. Habitam a parte norte do jardim e dão uma sombra suave a um pequeno bar em forma de quiosque, onde é sublime tomar uma bebida.

Viajo agora para a cultura neolítica Yangshao, nome de uma vila na província de Henan, na região do curso médio do rio Amarelo, China, que floresceu entre 5000 e 3000 anos a.C. e em cujos registos arqueológicos se encontraram os tecidos de seda mais antigos. É muito provável que a cultura da amoreira branca (Morus alba) para alimentar os bichos-da-seda tenha começado na região de Yangshao há mais de 5000 anos. Passado pouco tempo a seda era fabricada numa vasta região do sul da Ásia tendo chegado ao Império Bizantino através do contrabando de ovos de bicho-da-seda na Rota da Seda, no VI século d.C., e depois a toda a Europa. Cerca de 1200 anos depois, o Marquês de Pombal mandou construir em quintas e terras de cultivo nos limites de Lisboa uma fábrica de tecidos de seda e plantar amoreiras, tendo inaugurado o bairro para os fabricantes, traçado por Carlos Mardel, em 1759. Como o leitor certamente já adivinhou esta é a história do jardim das Amoreiras ou Jardim Marcelino Mesquita, conhecido dramaturgo, poeta e escritor natural do Cartaxo. Recentemente foram plantados alguns exemplares de amoreira branca a recordar a história do local.

De entre outras espécies de árvores com longas e interessantes histórias vou finalmente falar-vos do ginkgo (Ginkgo biloba), uma árvore dióica (com sexos separados em indivíduos diferentes) e caducifólia, relíquia notável da evolução das espécies. O género ginkgo pertence ao grupo das gimnospermas, ou seja, plantas com sementes, mas que não têm frutos a envolver as sementes, nem flores. São as coníferas (pinheiros, cedros, ciprestes, teixos), as cicadáceas (as cicas cultivadas nos jardins, que parecem pequenas palmeiras, com belos exemplares no jardim das Amoreiras e no adjacente reservatório da Mãe d’Água do Aqueduto), a welwítschia ou polvo do deserto do Namibe, no sul de Angola e Namíbia, e o Ginkgo biloba. Este é um “fóssil vivo”, como dizia Charles Darwin, e provavelmente a espécie de árvore mais antiga, pois tem evoluído separadamente das outras espécies desde há cerca de 315 milhões de anos, antes de surgirem os dinossáurios, sendo atualmente o único representante vivo da ordem das Ginkgoales.

Apesar de se ter espalhado por vários continentes, incluindo a Europa, a sua área de distribuição diminuiu e, há dois milhões de anos, ficou restrita a uma pequena região da China. Foi conservada no leste da China durante cerca de mil anos por monges nos seus templos por a consideravam sagrada e um símbolo de resistência, longevidade, fertilidade, saúde e esperança. As sementes designadas “frutos prateados”, ou gin-kyo em chinês, origem da palavra ginkgo, são comestíveis e, tal como as folhas, têm propriedades medicinais. Pensou-se que a árvore estava extinta na natureza mas encontraram-se recentemente populações antigas num refúgio da última glaciação nos vales e encostas das montanhas de Dalou nas províncias Guizhou e Sichuan da China (Tang et al., 2012, Amer. J. Bot.). No outono, as folhas adquirem uma cor amarela dourada e cobrem o solo à sua volta. Recomendo a visita ao jardim das Amoreiras nos finais de novembro para observar as árvores douradas que rodeiam um pequeno lago circular no centro do jardim. Mas afinal o que é que tudo isto tem a ver com as armas nucleares?

Estou a pensar na bomba atómica "Little Boy", uma arma nuclear com uma potência equivalente a 15 quilotoneladas de TNT, lançada pelos EUA às 8h16 da manhã de 6 de agosto de 1945 sobre a cidade japonesa de Hisoshima. Entre 80.000 a 140.000 pessoas morreram instantaneamente ou passados poucos dias, tendo acabado por morrer cerca de 237.000 pessoas. A explosão nuclear elevou a temperatura no hipocentro (ponto à superfície mais próximo da explosão realizada a 610m de altitude) para valores entre 3000 e 4000 graus Celsius destruindo os corpos humanos de forma irreconhecível (Arata Osada, Children Of The A-Bomb: Testament Of The Boys And Girls Of Hiroshima, 1959). Num caso conhecido a intensidade da radiação provocada pela explosão gravou na pedra a sombra de uma pessoa cujo nome não foi possível identificar. O seu corpo protegeu os degraus de pedra, frente à agência em Hiroshima do Banco Sumitomo, onde estava sentada provavelmente à espera da abertura do banco, de serem branqueados pela radiação emitida pela bomba.

Em 1971, os degraus com a sombra humana foram retirados e expostos no Museu do Memorial da Paz de Hiroshima. Houve árvores que sobreviveram à destruição nuclear, a que os japoneses chamam hibakujumoku. Em Hiroshima sobrevivem cerca de 160 hibakujumoku cada uma com a sua história silenciosa. Entre elas há cinco ginkgos, um deles no templo Myojoin a cerca de dois quilómetros do hipocentro da bomba com cerca de 150 anos. Nos EUA descendentes dos sobreviventes de Hiroshima criaram o movimento das Árvores da Paz de Hiroshima (Will Matsuda). Sabe-se que os ginkgo podem viver mais de 3000 anos, e que pelo menos até aos 600 anos de idade apresentam áreas foliares, eficiência fotossintética e taxas de germinação de sementes semelhantes às árvores jovens. Possuem uma extraordinária resistência às pragas de insetos e aos agentes patogénicos vírus, bactérias e fungos. O seu grande genoma inclui uma elevada percentagem de séries repetidas que, ao longo do tempo, criaram processos de defesa inovadores e mais eficientes. Têm 10,6 mil milhões de pares de bases comparado com apenas 3,2 no Homo sapiens. Em conclusão, o longo tempo de evolução do Ginkgo biloba deu-lhe uma juventude quase eterna, uma imensa longevidade e resistência ao envelhecimento, objetivos que o homem tanto sonha atingir.

Mas na nossa época, temos o problema da perda acelerada de biodiversidade e as gimnospérmicas são um dos grupos de organismos vivos mais ameaçados, com 40% das espécies em risco elevado de extinção, cerca do dobro das estimativas mais recentes para todas as outras plantas (Forest et al., 2018, Nature). Ao classificar o risco de extinção de uma espécie com o índice Evolutionary Distinct and Globally Endangered (EDGE), que tem em conta a excecionalidade da história evolutiva, o Ginkgo biloba fica com um dos valores mais elevados, devido à vulnerabilidade das suas pequenas populações naturais na China.

Há uma discussão perene sobre a sensatez da decisão de usar bombas nucleares pela primeira vez. Nunca haverá acordo porque a moral dos vencedores é diferente e irreconciliável com a dos vencidos. O que se perdeu foi parte da dignidade e do valor da vida humana, um processo imparável que decorre do mito salvador da tecnologia sem o qual já não podemos viver. Hoje o Homo sapiens já produz e armazena uma grande variedade de bombas atómicas prontas a serem usadas — armas nucleares táticas (com potências entre 0,3 a centenas de vezes superiores à de Hiroshima) e estratégicas de fusão termonuclear e de longo alcance (mais potentes do que a de Hiroshima por fatores superiores a 1000).

Há muitos outros exemplos daquela perda de dignidade humana. Por exemplo, a fuga trágica de migrantes do Sul Global para o Norte Global, em particular no Mediterrâneo, fruto de desigualdades brutais agravadas na época atual por diversos fatores bem conhecidos. A inteligência artificial que tanto nos convoca vive do que criamos, mas depois adquire uma autonomia própria que nos desvaloriza por nos tornar dependentes de novos poderes sem limites humanos. Não há retrocesso possível porque a condição humana não o permite. Há um caminho seguro, mas é cada vez mais estreito, somos muitos (e em crescimento, embora atenuado) no mundo finito que é a nossa casa comum, viciados no consumismo, na desigualdade e na discórdia, e não suportamos a desilusão de que apesar de um aparente e imenso sucesso o futuro será mais difícil.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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